Aos 37 anos, Renata Maria Sant’Anna pode se orgulhar do bom currículo. São 20 títulos na prateleira. Libertadores, Mercosul, Copa do Brasil, Brasileiro e uma sequência de seis troféus do Carioca. Kaká pode se gabar de ter sido fundamental na segunda conquista continental do Santos em 2010 e de ter jogado ao lado de Marta.

Nada disso, porém, tem mais valor para a atual goleira do Flamengo/Marinha do que a felicidade de Dona Therezinha. É o sorriso no rosto da mãe, empregada doméstica aposentada, a cada retorno para a casa em Taboão da Serra (SP), que compensa a distância e a luta para se manter no futebol até dos dias de hoje. A alegria da mãe ao contar aos vizinhos que tem uma filha campeã é praticamente uma medalha de ouro.

— Meu sucesso veio da vontade dela de me ver crescer. De olhar para mim e dizer “vou ajudar minha filha”. Essa é a melhor parte de todas. Ela me deu a oportunidade de continuar e hoje vejo a felicidade dela e vejo que valeu a pena todo esforço que fez por mim — conta Kaká, que só tem uma obrigação quando retorna a São Paulo. — Ela sempre me pede a medalha do título e a camisa. Tenho que levar um presente e contar como foi o campeonato, pois não passam todos os jogos na TV.

Bem antes de se tornar a goleira titular do Flamengo, em 2016, Kaká teve de dar sua contribuição ao orçamento da família. Com a perda do pai, há 17 anos, ela tomou a decisão mais difícil da vida: largou o sonho que começou nas ruas do bairro e continuava no Juventus, time pelo qual disputou o Brasileiro Sub-19, para dar apoio à mãe.

Por um ano e meio, dedicou-se ao trabalho de serviços gerais num colégio. Limpava as salas, ajudava na cozinha e organizava a entrada e saída das crianças.

— Não era isso que queria. Depois de um ano e meio, mais ou menos, não aguentei mais. O amor ao futebol falou mais alto — relembra.

No retorno à antiga paixão, a prova de que a vida prega surpresas. Jogadora de linha desde a escolinha do Flamengo em Embu das Artes, Kaká recebeu o desafio de fazer um teste para goleira no Santos. Pensou ser brincadeira da amiga que a indicou. Era sério. Resolveu pagar para ver, mesmo com seus modestos 1,68m.

Para quem trabalhou em feiras livres, vendeu verduras na rua com o pai e mexeu com carros numa oficina, um novo ofício não chega a ser um grande desafio.

— Ali, me reinventei como goleira. Foi um longo processo de adaptação. Só em 2006 comecei a treinar de fato no gol com o técnico Ricardo Navarro. Foi lá que tive a primeira convocação para a seleção brasileira — diz Kaká, que, por causa de uma lesão na mão, voltou à linha por um período em 2007. E até marcou três gols.

Na parceria com a Marinha, Kaká ainda tem mais três anos de contrato. Estará com 40 anos ao fim dele. Formada em educação física, ela tem seus planos traçados a longo prazo. Pretende ser treinadora de goleiras.

Seja no rubro-negro ou em outro clube, Kaká ainda vive o sonho da menina do interior de São Paulo que queria jogar bola. Aquela que vestiu o uniforme do Flamengo na adolescência e mais de duas décadas depois tornou-se uma das mais longínquas na história recente da posição, entre jogadoras e jogadores.

— É legal olhar para trás, ver sua vida há 15, 16 anos, começando, e hoje vê que deu certo. Vale a pena lutar pelo que a gente gosta mesmo sabendo as dificuldades.

As dificuldades não faltaram. No sábado, o Flamengo perdeu por 4 a 0 para o Santos, na primeira rodada do Brasileiro. Um dos gols foi de Cristiane, da seleção.