Gerson precisou colocar a cabeça no lugar para ser um dos principais nomes do Flamengo na vitória, de virada, com ares épicos, sobre o Bahia, por 4 a 3. Enquanto maquinava as ideias para liderar o meio-campo de um time que estava com um jogador a menos, em uma partida relevante para a perseguição ao título do Brasileirão, fervia na mente uma frase ouvida minutos antes: “Cala a boca, negro”.

Segundo o jogador do Fla, a injúria racial saiu da boca do colombiano Índio Ramírez, que instantes antes fizera o primeiro gol do Bahia, já no segundo tempo. A indignação foi natural com o que ouvira e com o técnico Mano Menezes — que, no primeiro momento, atribuiu a reação de Gerson à “malandragem”.

Não por acaso, o meio-campista rubro-negro fez questão de denunciar o fato, assim que teve chance. Sem ver efeito de sua reclamação em campo, foi ao microfone do repórter Fernando Saraiva, do Premiere, para revelar ao mundo seu sentimentos.

Haverá repercussões na Justiça Desportiva: o Flamengo promete uma representação contra Ramírez e Mano. Segundo Rodrigo Dunshee de Abranches, vice geral e jurídico rubro-negro, o treinador “apoiou a injúria racial”.

“O ‘cala boca, negro’ é justamente o que não vai mais acontecer. Desde os 8 anos, quando iniciei minha trajetória no futebol, ouço, às vezes só por olhares, o ‘cala a boca, negro’. E eles não conseguiram. Não será agora”, disse Gerson, que recebeu o apoio não só do Flamengo, mas de outros clubes, como Vasco, Botafogo e Fluminense

Uma posição acima do Z-4, Mano Menezes foi demitido. A imagem dele fica arranhada. No meio do bate-boca, ele chegou a dizer ao quarto árbitro: “Aquele menino não ia fazer isso com o Gerson, conheço o jogador”. Tudo documentado nas imagens da transmissão do Premiere.

Ao mesmo tempo em que anunciou a saída do treinador, o Bahia disse que “se posicionará em breve, após finalizar a apuração do caso” envolvendo Ramírez.

Resiliência rubro-negra

Denunciar o racismo não é cortina de fumaça. Se nada fora do aceitável tivesse acontecido, Gerson poderia muito bem se limitar a exaltar, dignamente, a reação do Flamengo diante do Bahia. O time precisou ser resiliente em um jogo complicado. Quando há uma vitória de virada, com um jogador a menos, o trabalho de equipe fica explícito.

Mas é preciso pontuar quem foi fora da curva. Bruno Henrique foi o protagonista do primeiro tempo. O golaço com quatro minutos deu o tom da atuação, depois da polêmica expulsão de Gabigol. O árbitro Flávio Rodrigues de Souza não tolerou, ainda aos nove minutos, um xingamento. Vermelho direto. Coube a Bruno Henrique se isolar na frente e, com muito espaço, tornar-se a válvula de escape de um time que via o Bahia ficar mais coma bola. Em uma ligação certeira, Bruno Henrique serviu Isla para um 2 a 0 improvável.

Parcela desse domínio teve Gerson como motor da engrenagem no setor que fica mais sacrificado quando há desvantagem numérica: é mais difícil marcar e construir.

Mas não se pode atrelar apenas à expulsão o enredo do jogo no segundo tempo. O Flamengo se desligou. O Bahia voltou mais organizado ofensivamente, sobretudo pela entrada de Gustavo Novaes, e atropelou: em 13 minutos, tinha virado para 3 a 2. Gilberto replicou o golaço de Bruno Henrique e fez outro de cabeça. Cochilo.

E foi nesse meio tempo que Gersou ouviu o “cala a boca, negro” de Ramírez.

Houve tempo de sobra para a reação psicológica e estratégica. Rogério Ceni escolheu bem: Pedro substituiu Arrascaeta e o enredo do jogo deu uma guinada a favor do Fla. O atacante usou elegância para fazer um gol de peito. Para completar, aos 44 minutos do segundo tempo, deu um passe de letra para Vitinho virar.

– Não vou “calar a minha boca”. A minha luta, a luta dos negros, não vai parar – é o aviso de Gerson.

Objetivos esportivos tornam-se secundários diante da relevância de um posicionamento contra uma mazela da sociedade, tal qual o racismo. Mas a “luta” também permanece em relação ao título do Brasileirão.