Arthur Muhlenberg: “Prioridades”

O problema de finais de Carioca disputados em dois jogos é que um jogo come valor do outro. Foi pouca gente no primeiro jogo não somente porque o organizador (a vasca) fez lambança, mas também porque o senso comum indica que as coisas só se resolvem na partida derradeira. Aí o Flamengo vai lá, passa o rodo na baranga, mete 2×0 de passagem e praticamente acaba com a brincadeira rural uma semana antes da partida final.

Não fossem o fanatismo e a proverbial assiduidade da torcida do Flamengo em qualquer jurisdição e situação e o comparecimento popular ao segundo jogo estaria seriamente comprometido. Mas aqui é Flamengo e ninguém que possua os meios para tal abre mão de ver aquela voltinha olímpica marota enquanto cantaVice de Novo! e Olha! Olha a Força indo embora!Ser campeão de qualquer coisa é muito bom. Até do Carioca.

Mas a gente sabe que depois do jogo de ontem no Vazíssimo, o Carioca já era, foi pro ovo, acabou. O Flamengo mal tomou conhecimento da presença do bacalhau em campo. Jogou seu futebol em desenvolvimento (um eufemismo popular nos anos do Milagre Econômico para subdesenvolvido), entregou as encomendas e fim de papo. O 2×0 ficou barato pros camisa-feia, eles além de contarem com aquela ajudinha dos mané do apito (tradicional em Cariocas) ainda tiveram a suprema sorte de um problema elétrico no VAR que os livrou de levarem mais um ou dois gols que certamente esvaziariam ainda mais a decisão de domingo que vem. Sem falar que o VAR usado por quem não leu o manual de instruções, mostrou o deletério e nocivo poder de inibir até mesmo o grito primal de gol do torcedor. Que agora fica esperando a confirmação do Big Brother (no sentido orwelliano do termo) pra poder extravasar suas emoções. Não sejamos luditas, mas certas modernidades só servem pra matar a magia.

A partida foi de tal maneira desigual que qualquer análise fica prejudicada por aquele velho papo de falta de parâmetros. Era chato perder de vez em quando, mas é muito mais chato ir a um Flamengo x Vasco já sabendo que o adversário nada poderá fazer. Ontem não teve disputa, foi quase um treino. Por isso ainda reluto em elogiar o Arão, que me pareceu ter feito ontem uma de suas melhores partidas na carreira. Foi chato pra mim, que já antes do jogo estava convencido que ele não tem lugar no time. Mas vida de corneta é assim mesmo, nem sempre se pode ganhar todas e nossa obrigação é se adaptar à realidade.

O esquema sem Diego obrigou o Arão a jogar mais atrás e o vi menos peladeiro e mais participativo. A mesma coisa vale pro Arrascaeta, tive a nítida impressão que o time ganhou em velocidade e lucidez com o uruguaio no meio. Mas como ter certeza se jogávamos contra um pato manco? Conviveremos com essas dúvidas até que as tabelas da vida nos coloquem diante de adversários mais qualificados. Mas no jogo de ontem os dois, Arão e Arrascaeta, além de Bruno Henrique e a camisa imaculada de Diego Alves, brilharam. Sobrou elogio até pro Abel, o que da minha parte soa muito irregular. Falaremos mais do Abel em seguida.

Nem precisamos comentar o nível de tabajarianismo do nosso paupérrimo estadual. As coisas na órbita da FERJ dão sempre a impressão de que foram todas coladas com cuspe. Mas isso não livra a cara do árbitro fraco, que inovou ao consultar o assistente de vídeo, negar o que as imagens mostravam e anular o gol legítimo de Bruno Henrique. Porra, pra roubar assim na cara de madeira não precisava de VAR. Mas isso é o Carioca, todo mundo sabia como era e o seu bizarro regulamento foi aprovados por todos os participantes. E o Flamengão também disse sim às artes de Rubinho e Cia.

Mas o que mais me incomoda no Carioca não é a sua incipiência ou desatualidade, mas a sua capacidade de mostrar a realidade dos fatos. Sabemos que p Carioca é uma droga recreativa, quando usada sem excessos, é também um antídoto violento para o Oba-Oba. Porque quem vê a dificuldade que o Flamengo, com seu elenco de meio bilhão de dinheiros e aquela camisa que só falta dar cambalhotas e adeusinhos pra a arquibancada, encontra pra suplantar timinhos constrangedores como o da vasca de ontem, vê também que o Flamengo está à anos-luz de distância da excelência técnica e tática que humildemente exigimos.

Vasco, Botafogo, Fluminense e Bangu tão só o pó da rabiola, mas endureceram seus jogos com a gente e todos esses mortos de fome deixaram um coco no nosso balaio. Sim, amigos, o Carioca é a prova definitiva que o Flamengão Fuderosão Campeão do Mundo Livre só existe em nossos delírios. A nossa realidade é o Carioca, um campeonato que está se tornando periférico até para os padrões do Brasil. Por sua vez um país periférico em um continente também da perifa do futebol. Resumindo, fora as pilhas com os três patetas cariocas, nossa moral tem pequena amplitude. E só vai aumentar se, e quando, mostrarmos algo a mais na Libertadores.

E é aí que a porra do segundo jogo da final começa a atrapalhar nossas altas aspirações continentais. Na coletiva após o jogo no Engenhão o Abel já foi tirando o seu da reta e jogando na conta da diretoria a exigência de escalar o time AAA no domingo que vem. Apenas 3 dias antes de cruzarmos a Cordilheira dos Andes pra ir buscar um ponto obrigatório na casa da LDU. No meu entendimento tosco de leigo escalar os titulares pra jogar com a vasca significa priorizar a porra do Carioca em detrimento da Libertadores. Uma opção que o Flamengo vem fazendo nos últimos 38 anos e só tomando na cabeça. E parece que vamos repetir esse ano também.

Por um instante consigo me colocar no lugar do Abel, com seu infausto currículo e decisões pelo Flamengo. Deve estar tendo pesadelos horripilantes com a mera possibilidade de dar ruim em um dos próximos dois jogos. Mas, sinceramente, não sei qual tragédia seria pior na Escala Rubro-Negra de Vexames, perder um Carioca praticamente obrigatório ou repetir a presepada de 2017 e sair da Libertadores ainda na fase de grupos. O Abel tá há anos no futebol, já tá grandinho pra escolher sozinho se prefere pular na panela ou no fogo. Não precisava mandar letrinha em coletiva e dizer que a diretoria tá pressionando. Ou ele manda no time, como afirmou desnecessariamente diversas vezes, ou não manda.

Como meu compromisso é apenas com o bom senso e com a lógica, e não com jogadores, diretores, torcedores e puxa-sacos, é fácil tomar essa decisão. Tem que ganhar os dois jogos, óbvio. Mas pra ganhar da baranga no domingo não precisa a trupe toda. Mete um catadão com os moleques (que já tocaram o terror na Final da Taça Rio), umas poucas feras escolhidas repousando no banco para qualquer eventualidade e um abraço. Carioca é pré-temporada e já passou demais da hora de acabar.

Reprodução: Arthur Muhlenberg | República Paz & Amor

Fonte: https://colunadoflamengo.com/2019/04/arthur-muhlenberg-prioridades/

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