No meio sempre conturbado do futebol, cada um defende seus interesses. Não se vê ninguém corajoso o bastante para admirar jogadores adversários – no máximo, invejá-los secretamente, nos cantos mais obscuros da mente -, tampouco valorizar as conquistas dos rivais. Existe uma espécie de acordo não escrito, seguido como uma doutrina religiosa, que preconiza que somente os atletas do seu time, da sua fé, merecem ser exaltados.
Assim como os cometas, de tempos em tempos alguém desafia as normas estabelecidas – e poucos o fazem com a intensidade de Gabigol.
A combinação improvável de características – o apelido marcante, a comemoração fácil de imitar, a personalidade infantil e ao mesmo tempo arrogante, além, é claro, da habilidade de goleador – transformou o atacante no maior ídolo da história recente do clube mais popular do Brasil (e o segundo maior de todos os tempos, atrás apenas do inatingível Zico). Chegou em 2019 para representar a era de abundância financeira rubro-negra, sendo o protagonista dos títulos mais importantes, especialmente as duas Libertadores, conquistadas com seus gols. Isso não é pouca coisa.
No entanto, Gabigol conquistou muito mais do que troféus. Tornou-se objeto de desejo de outras torcidas, algo raro de se ver. Como disse o ídolo vascaíno Gonzaguinha (1945-1991), ‘Eu fico com a pureza da resposta das crianças’. Em 2019, o ídolo rubro-negro foi calorosamente aplaudido por meninos e meninas torcedores do Grêmio, no túnel da arena do clube gaúcho – um deles, Yan Quevedo, ganhou sua camisa e pulou em êxtase. O mesmo aconteceu em jogos contra o Vasco (maior rival), o Palmeiras (em São Paulo), com uma garota na Arena da Baixada e um garoto em Barranquilla, na Colômbia.
Quantos jogadores são idolatrados até mesmo pelos adversários? Como transformar essa enorme adoração em lucro? Diante desse desafio, a diretoria do Flamengo falha de forma estrondosa ao permitir que Gabigol saia. Obsessivamente focados nos números para justificar a decisão, como se fossem seguidores do Alcorão, eles repetem os erros dos antecessores, cúmplices das saídas de ídolos como Zizinho, Gerson, Tita, Bebeto, Adriano Imperador.
É verdade – o jogador, uma das dez contratações mais caras da história do futebol brasileiro (R$ 78,6 milhões), recebe um dos maiores salários e enfrenta uma longa fase de baixa performance. Além disso, esteve envolvido em um estranho caso de fraude no exame antidoping e, por fim, permitiu-se ser fotografado com a camisa do Corinthians, em um momento de descontração. Na lógica implacável do capitalismo, não há perdão.
No entanto, basta comparecer ao Maracanã, nos últimos jogos do Flamengo, para entender a situação. A torcida aplaude Gabigol a cada movimento: ao entrar em campo, durante o aquecimento, ao se dirigir ao vestiário… Até mesmo quando ele entra em campo, parece que é um gol. E de fato, é um gol.
O coro das arquibancadas (mesmo da seleta plateia do Maracanã moderno) indica o que os burocratas do futebol não percebem: Gabigol precisa permanecer no Flamengo para sempre. Quanto vale a legião de crianças que se tornaram rubro-negras por causa dele? Quanto a torcida cresceu imitando sua comemoração? Quanto custa a inveja dos rivais?
Publicado em colunadofla.com
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