Peu tem uma ligação com o CSA incomum entre ídolos e clubes. Filho de roupeiro e lavadeira da agremiação, ele nasceu no antigo estádio do Mutange, em Maceió, onde foi criado com nove irmãos. Trabalhou na equipe de ajudante na rouparia até gandula antes de virar um talentoso camisa 10, inclusive reserva de Zico no Flamengo nos anos 80. Na adolescência, quando a família deixou o estádio foi para morar na casa que ficava exatamente do outro lado da rua. Tudo para não cortar o vínculo. Essa área tão importante para ele e para o time, no entanto, foi para sempre apagada do mapa.
Hoje, não há mais casas, pavimentos e nem vestígios do estádio Gustavo Paiva, palco de clássicos entre CSA e CRB e de títulos, como o Campeonato Alagoano de 1963. Aquela área de 540.000 m² virou um descampado, com mato e também areia, equipamentos sísmicos, além do avanço das águas da lagoa Mundaú, que antes ficava a 200 m do campo e a cada dia sobe mais por causa do afundamento do solo.
São consequências de quase 50 anos de extração de sal-gema, que impactou também os bairros de Bebedouro, Pinheiro, Bom Parto e Farol.
“No contexto mundial, é o maior desastre sócio econômico em termos de mineração de sal. Outros exemplos existem, mas em área desabitadas. Isso envolve 60.000 pessoas e 15.000 imóveis demolidos ou desocupados. Um impacto, mais ou menos, de 5% a 6% sobre a população de Maceió”, afirma Marcos Carnaúba, 81, engenheiro civil, professor universitário e que ocupou cargos públicos, como presidente do Instituto Estadual do Meio Ambiente (IMA), diretor da Secretaria de Recursos Hídricos, entre outros.
O início desse desastre, que já fez a petroquímica Braskem desembolsar até dezembro de 2023 R$ 4,4 bilhões em indenizações, remonta a março de 2018, quando um tremor de magnitude 2.5 na escala Richter foi sentido em algumas áreas de Maceió.
Inicialmente o bairro de Pinheiro foi o mais afetado, com rachaduras nas vias públicas e nas casas. Logo depois os efeitos atingiram os quatro bairros vizinhos, provocando especialmente o afundamento do solo e tornando áreas como o Mutange de risco.
Desde 2019 a Braskem desativou as 35 minas que ficavam naquela região, muitas instaladas em 1976, início da exploração de sal-gema em Maceió. Em bairros como Bebedouro, Bom Parto e Pinheiro a situação é alarmante. Há ruas com casas desocupadas de um lado e moradores do outro. No Mutange, os últimos moradores foram retirados em março de 2020, durante a pandemia de Covid-19.
“Ali morreu gente de infarto, de tristeza. Tem gente depressiva internada. É gente que perdeu tudo. Perdeu a família, perdeu os laços. Quando você perde os seus amigos, você perdeu tudo que tinha na vida”, disse o professor Carnaúba.
Peu e a família CSA
Peu já não estava morando na casa que a mãe conseguiu em frente ao campo do CSA quando ele era um adolescente começando a mostrar talento no futebol.
Mas continuava frequentando aquela região que tanta alegria deu à família.
“Eu morava dentro do campo e ali dentro eu sabia onde tinha os maiores caranguejos pra pegar, pra botar ratoeira. Tinha a lagoa que a gente cortava uns matos e colocava dentro da lagoa, e quando puxava já vinha cheia de camarão. Me lembro que meu pai, quando tava vivo, plantava batata, macaxeira, inhame. Eu, com meus oito anos, colocava tudo no caçuá de um jumento e saia vendendo. Esse dinheiro dava para ajudar em casa, assim como o dinheiro dos carangueijos”, disse Peu.
A proximidade com a lagoa também deu a Peu e a família outra coisa. Ele e quatro irmãos que viraram jogadores receberam apelidos de crustáceos de um treinador.
“O meu primeiro irmão que jogou bola chama-se Manoelzinho. Ficou Manoelzinho Caranguejo porque tinha um treinador chamado Ely Miranda que, quando chegou um jogador com o mesmo do irmão, disse: ‘Como você é da terra, e aqui no Mutange tem muito caranguejo, você vai ficar Manoelzinho Caranguejo’. Aí pegou”.
“Meu outro irmão era o Jorge Siri. O mesmo treinador foi o culpado porque chegou um cara chamado Jorge e ele falou assim: ‘Como você é daqui e na lagoa tem muito siri você vai ficar Jorge Siri’. E ficou até hoje. Aí depois veio eu. Ainda tentaram colocar um apelido em mim, Peu Aratu, mas não pegou. Graça a Deus não pegou”, disse.
“Por último teve o Chico, que é o Chico Chié. Foi esse mesmo treinador que colocou o nome dele assim. Chié porque o Chico é mais branco assim e tem um ‘chiésinho’ que é um tipo de um caranguejo e ele parece. Aí pegou”, completou Peu.
Além dos boleiros, Bau, um irmão que teve uma deficiência decorrente de uma queda em que bateu a cabeça no chão, trabalhou no CSA como roupeiro e ajudante. As irmãs Celuzia, Celma, Celine, Irene e Célia também viveram essa fase dentro do CSA.
Antes de jogar bola, Peu era ajudando do pai, Antônio Ângelo Miguel. Mas tomava mais broncas do que recebia elogios. Tudo por causa do fanatismo.
“Meu pai sempre dizia: ‘Peu, vem me ajudar aqui a limpar a chuteira dos jogadores’, que o campo tinha muita lama naquele tempo. Eu era um torcedor fanático do CSA, e quando tinha algum jogador que não estava jogando bem, eu não limpava a chuteira dele. Aí ele ia reclamar para o meu pai: ‘Seu Antônio, tá suja’. Aí meu pai vinha e falava: ‘Mas Peu a do cara tá suja, você nem limpou’. Eu dizia: ‘Pai, esse cara não faz um gol. Como você quer que eu limpe a chuteira desse cara?’. Aí eu ia limpar e quando ia dar a chuteira eu dizia: ‘Irmão, melhora um pouco, dá mais sangue'”, disse.
Como gandula, ele lembra que a bronca era por só querer ajudar de um jeito.
“Eu dizia: ‘Eu vou, mas só vou atrás do gol e do gol que o CSA ataca para ver gol’. Eu ficava e era bem treinado. Se o time e tivesse ganhado, eu ia mais devagar. Se tivesse perdendo eu ia mais rápido. Isso aí era muito bem planejado”, relembrou.
São lembranças que alegram Peu e ao mesmo tempo provocam dor. Hoje ele já não pode mais andar pelo Mutange. O acesso é restrito a funcionários da Braskem e agentes públicos, como a Defesa Civil, que monitoram aquela área. Sobrou para ele as recordações e a mágoa por uma indenização “empurrada goela abaixo”. Ao pagar o valor, a petroquímica celebrou um contrato de compra e venda de imóvel…
“A Braskem fez uma reunião com os herdeiros. Nessa reunião eu saí triste porque eu vi um deboche. Você não pode estar debochando de uma história que tá na memória e está nos livros do CSA e da minha vida. Ela falou que nós vendemos aquela casa, eu digo: ‘A gente não vendeu a casa. Vocês que botaram pra fora e deram o que vocês queriam’. Agora é indenização moral por perca, pois vocês não deram nada pra nós. O que você deu foi muita humilhação. Outra coisa. Muita gente que morava no Mutange vivia do que conseguia lá. Podiam não ter dinheiro, mas minha mãe dizia que se não fosse preguiçoso tinha camarão, caranguejo, fruta. Era só pegar. As pessoas que sobreviviam disso e foram morar em outros lugares. Como elas ficam?”.
Hoje, duas irmãs dele ainda estão na região. Elas moram no bairro de Bebedouro. Perto delas já tem casas desocupadas. A apreensão sobre o futuro (sair ou ficar) e o medo do que ainda pode acontecer se mais minas colapsarem tiram o sono e a paz.
“Nós não estamos aqui para punir ninguém, mas que [a Braskem] não deixe prejudicar mais gente daqui pra frente. Tem muita gente que morava no Mutange e está passando fome em outros locais. Tá difícil, tá difícil”, disse Peu.
O CSA e a história perdida
Hoje, quem vê o CSA em seu novo centro de treinamento, numa área de 140 mil metros quadrados perto do aeroporto internacional de Maceió, pode interpretar que o clube se de bem ao sair do Mutange. Afinal, lá ele tinha apenas um campo, com academia e alojamentos para concentração pequenos, além do forte calor, típico da cidade, mas acentuado por estar bem próximo da lagoa de Mundaú.
No novo espaço, que foi inaugurado para os atletas em agosto de 2023, há seis campos para treinamento, um deles com grama sintética, e todos os espaços, como academia, refeitório, sala de recreação e atendimento à imprensa são refrigerados. Ainda neste ano devem ser concluídos o hotel para o profissional e para a base.
Tudo isso foi sim resultado da indenização que a Braskem pagou. Ou de parte dela. Afinal, o clube diz que não teve negociação na hora de definir um valor. Foi na base do “pegar ou largar” e boa parte dos recursos foram usados para repassar o estádio Gustavo Paiva, onde o CSA ficou sediado por quase 100 anos, para a petroquímica.
“Inicialmente, o valor proposto era muito insignificante e nós mostramos para ele que não se tratava só de danos materiais, mas danos sentimentais. É uma história de 100 anos. Precisamos contratar uma empresa para fazer uma valorização, a fazer um valor mais ou menos estimado, estimativo, mais ou menos. E chegamos ao final que bateram o martelo da seguinte forma: ou esse valor ou vai para a justiça. Eles ofereceram R$ 31.180.000,00. Só que esse dinheiro também a gente tinha que pagar todo o passivo do clube para passar a escritura para eles. Pagamos dívidas que, se podia ter algum benefício lá na frente, por prescrição ou por valores absurdos de cobrança de IPTU, de dívida com a União, um monte de coisas, a gente não poderia recorrer mais. Então, nós tivemos que pagar tudo isso com esse recurso”, diz Rafael Tenório, 69, presidente do CSA entre 2015 e 2021 e que retornou em 2023.
O CSA também teve outro problema para lidar quando, em 30 de março de 2020, disse adeus ao Mutange para nunca mais voltar. Isso porque não tinha naquele momento um outro local que pudesse receber os jogadores e a estrutura profissional.
“Alugamos o campo do Corinthians Alagoano, que estava abandonado, e passamos seis meses reformando para poder usar. Aproveitamos que todas as competições estavam paradas por causa da pandemia de Covid-19. Senão não teríamos onde ficar, se preparar para as competições, alojar os jogadores”, afirma o presidente.
Foram três anos e meio sem casa própria. Período que coincidiu com a saída de Tenório da presidência e problemas ainda maiores. O dinheiro da indenização acabou e o clube foi rebaixado para a Série C do Brasileiro, onde está até hoje.
A identidade também foi comprometida. O Mutange estava presente até no hino do CSA, havia muitos torcedores vizinhos ao antigo campo, o que mantinha aquele calor humano e as pessoas que colaboravam com o clube também eram dos bairros. O novo CT é distante do centro, fica numa área onde ainda não tem moradores e a presença de torcedores por enquanto é bastante incomum para um clube popular.
“Eu diria que quase todos os nossos funcionários que trabalhavam conosco moravam ali próximo, morava do outro lado da rua, entendeu? Então, assim, foi um trauma muito grande, porque além do CSA sair de lá, os trabalhadores também tiveram que sair. Foi muito doloroso para a gente. Tinha um valor histórico, um valor sentimental muito grande. Não foi só os danos materiais. Foi o dano físico. E assim os troféus, sabe? Foi um desastre mesmo e nós precisamos sair. Eu me recordo que eu chorei muito nesse tempo porque era um sonho que virou pesadelo. [Antes de sair] Eu tinha acabado de construir um novo vestiário, academia, mas tivemos que sair. E você sabe que não era o financeiro que estava ali em jogo. Tava ali uma história, um bairro tradicional, um bairro e centenário. Foi muito doloroso e triste”, afirma Tenório.
Para ele, em especial, também foi porque embora tenha nascido em Osasco, na Grande São Paulo, o presidente conheceu o Mutange aos 8 anos. Foi quando a família foi morar em Maceió. A infância dele foi naquela área. Até o estádio Rei Pelé existir (em 1970), todos os jogos do CSA eram ali e ele viu muitas vitórias e conquistas.
É por isso que atualmente o presidente batalha para que novas raízes sejam criadas. Tem pensado com a equipe de marketing iniciativas para aproximar o torcedor do CT e conta com ajuda de um vereador que quer batizar o bairro onde o CSA está de Novo Mutange, ao menos para que a saudade seja minimamente aplacada.
O que diz a Braskem
A Braskem ainda trabalha na área das antigas minas pesquisando e em ações para evitar que novos colapsos impactem ainda mais o meio-ambiente e as pessoas.
Na área que foi desabitada, é desejo do poder público que ali vire uma floresta nativa, de preservação. Com ou sem humanos é uma dúvida que ninguém sabe responder.
Em nota à reportagem, a Braskem disse que “segue cumprindo integralmente os cinco acordos assinados com autoridades federais, estaduais e municipal, que abrangem diversas medidas, como a realocação preventiva e compensação financeira das famílias; ações sociourbanísticas e ambientais; apoio a animais; zeladoria nos bairros; monitoramento do solo e fechamento definitivo dos poços de sal”.
Também afirmou que provisionou R$ 14,4 bilhões, dos quais R$ 9,2 bilhões foram usados em ações em Maceió, das quais incluem medidas socioambientais e R$ 4,4 bilhões em indenizações, até dezembro de 2023. Acrescentou que não caberá a ela (proprietária das casas que foram abandonadas) decidir o futuro da região e que se comprometeu a não edificar na região para fins comerciais ou habitacionais.
De qualquer forma, é uma cicatriz aberta que será difícil de fechar.
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