“Quando fala de um homem branco, você nunca diz ‘esse cara branco’, você diz ‘esse cara’. Então por que você… me escute, por que você tem que dizer ‘esse cara negro’?” A frase proferida pelo atacante Demba Ba, do Istanbul Basaksehir, ao quarto árbitro da partida contra o PSG — em jogo pela Liga dos Campeões no início do mês — ecoa nas injúrias raciais sofridas pelo volante do Flamengo Gerson, no domingo, no Maracanã, e pelo menino Luiz Eduardo, de 11 anos, num jogo das divisões de base no interior de Goiás.
Em todos os casos, eles foram chamados de “negro” ou “preto” de forma ofensiva durante um jogo de futebol.
Mas não é apenas dentro de um estádio que a conotação racista perpetua. Em ambientes de trabalho, familiar ou de amizade, as palavras ganham dimensão para além da caracterização de uma cor ou raça.
E isso não vem de hoje. Faz parte de uma construção histórica da figura do negro pelos europeus. Em seu livro “Peles negras, máscaras brancas”, o filósofo francês Frantz Fannon resume: “O negro não é um homem, é um homem negro”.
O doutorando em estudos sócios culturais pela Escola de Educação Física da USP, Neilton Ferreira Júnior, cita Fannon para explicar o uso recorrente do teor racista nas expressões do dia a dia.
— Em determinado momento da história, a produção do substantivo se estabeleceu para fazer a marcação do outro. A Europa precisava determinar quem era o outro e pôs em dúvida sua humanidade. A palavra negro marca essa diferença de humanidade. O racismo é a negação da humanidade do outro — analisa.
No episódio de Demba Ba, quando o quarto árbitro faz essa caracterização, não é apenas a cor de Pierre Webó, membro da comissão técnica, que está em referência.
— Quando a torcida imita ou faz sons de macaco, é uma representação para afetar algum jogador específico. No tratamento pessoal, é um ato de desumanização do outro, de inferiorização. Isso acontece porque só o negro é racializado, o branco nunca foi. O branco é o padrão, é a norma — explica Rodrigo Neres, mestre em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET/RJ.
O diretor do Observatório do Racismo no Futebol, Marcelo Carvalho, ressalta que essa desumanização histórica está arraigada no dia a dia. Nem por isso, deixa de se racista.
Para que haja entendimento disso por parte da sociedade, a ressignificação das palavras já bem estabelecida pelo movimento negro ao longo das décadas precisa de maior alcance.
— Não nos ofendemos por sermos reconhecidos como negros. Mas nunca usam a palavra branco na frente para designar alguém. ‘Negro’ sempre está na frente. Quem fala que ‘não pode chamar negro de negro’ não entendeu que é a conotação com que se usa — explica Carvalho, que contabiliza quase metade dos casos de racismo no futebol em comparação com 2019 (67), mesmo num ano de poucos meses de jogos, a maior parte deles, sem público.
Neilton Junior acrescenta que a total ressignificação dos termos na sociedade é um processo lento, político e educacional. A falsa democracia racial do país não permitiu a possibilidade do letramento nas questões raciais dentro da sociedade:
— São passos muito lentos, com algumas conquistas com mudanças no currículo. Esse movimento tardio cria seus efeitos, mas são geracionais. Duas, três gerações que não foram letradas nesse processo vão continuar nesse ciclo de propagação de mensagens racistas.
Investigação
A Polícia Civil abriu inquérito para apurar a denúncia de injúria racial de Gerson. A investigação ficará a cargo da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI). O jogador assinou intimação ontem e será ouvido hoje, às 10h. O acusado, Ramírez, o técnico Mano Menezes e o árbitro Flavio Rodrigues de Souza também serão convocados.
— Instaurei inquérito e combinei com o departamento jurídico do Flamengo para que o Gerson viesse aqui — disse a delegada Márcia Noeli ao site ge: — Pedi para a CBF os documentos referentes ao jogo. Injúria racial é crime e tem que ser punida. As pessoas devem entender que não pode haver mais racismo.