Não apenas os torcedores rubro-negros, mas também os atletas do Flamengo que participaram da conquista da Libertadores de 2019 jamais esquecerão desse feito. Por esse motivo, o ex-goleiro do Mengão, Diego Alves, escreveu uma carta aberta à Nação Rubro-Negra, comentando sobre a trajetória do Flamengo no torneio continental.
Diego Alves recorda todos os jogos do Flamengo durante a histórica campanha da Libertadores de 2019. Na fase de grupos, o Rubro-Negro enfrentou a LDU (EQU), o Peñarol (URU) e o San José (BOL). No mata-mata, o Flamengo enfrentou o Emelec (EQU), Internacional, Grêmio e, na grande final, o River Plate (ARG). Em um dos trechos da carta, o ex-goleiro relembrou a sensação ao ver Gabigol realizar a virada histórica na decisão.
— ‘Se o primeiro gol foi uma explosão, o segundo foi diferente. Não teve o mesmo ambiente. Alguns ainda comemoravam o primeiro gol. Mas a maioria chorava. Um grito abafado pelas lágrimas. Era um sentimento que só quem viu a geração do Zico pode falar. 38 anos depois. No mesmo dia que os ídolos imortais ganharam a primeira Libertadores, quis o destino que a gente tivesse a honra de acabar com um jejum de 38 anos na mesma data’ — afirmou Diego Alves.
No dia 23 de novembro de 2019, Flamengo e River Plate decidiram a final da Libertadores em Lima, no Peru. O time de Marcelo Gallardo abriu o placar logo no início da partida, com um gol de Rafael Santos Borré. Contudo, o Mengão protagonizou uma virada histórica nos minutos finais, com dois gols de Gabigol, aos 44’ e 47’ do segundo tempo, garantindo assim o bicampeonato do torneio.
Diego Alves chegou ao Flamengo em julho de 2017 e deixou o clube no final de 2022. Vale destacar que o goleiro fez parte do processo de reestruturação do Rubro-Negro. Com o Manto Sagrado, ele atuou em 216 jogos, sem ser vazado em 89 partidas. Além disso, conquistou com o Mengão: dois Campeonatos Brasileiros, duas Copas Libertadores, uma Copa do Brasil, duas Supercopas do Brasil, uma Recopa Sul-Americana e três Campeonatos Cariocas.
Flamengo, CONMEBOL Libertadores 2019 e a camisa amarela. É impossível não me emocionar ao falar sobre essas três coisas que marcaram minha vida. Por isso, deixo essa carta para a Nação Rubro-Negra.
É impossível esquecer tudo que vivi desde que vesti essa camisa pela primeira vez. O dia 23 de novembro de 2019 é significativo para mais de 40 milhões de torcedores. Para mim, não é diferente.
Já se passaram cinco anos desde a conquista da Libertadores em Lima e parece que foi ontem. Para falar sobre aquele histórico dia 23 de novembro, preciso voltar a 2017, 2018… anos marcados por tropeços em campo, decepções e até uma possível saída. Sim, eu quase deixei o Flamengo. Mas eu sabia que minha história não poderia ter aquele fim.
É aí que entra o ano de 2019. Se a tal ‘mudança de patamar’ proposta pelo querido Bruno Henrique passou a fazer sentido a partir de 23 de novembro de 2019, para mim, a transformação em um nível pessoal com o Flamengo começou no início de 2019. Aquele novo ciclo surgia para cicatrizar algumas feridas deixadas pelos anos anteriores. E o tempo é sempre o melhor remédio.
Desde que decidi permanecer, eu lembrava do propósito: ser campeão de algo grandioso no Flamengo. No final, eu voltarei a essa frase: ‘Muitos passaram, muitos tentam, mas poucos entram para a história’. Eu sabia que seria necessário passar por muitas dificuldades para que, no futuro, essa frase fizesse sentido em minha trajetória pelo Flamengo. E eu já havia passado. Sofrido. Lutado. A recompensa viria.
Sou muito grato ao técnico Abel Braga, peça fundamental para minha permanência no clube, assim como ao vice-presidente de futebol, Marcos Braz. Com Abel, começamos a Libertadores em uma situação inédita para mim. Jogar em Oruro contra o San José. Nunca havia jogado em um local com mais de 3600 metros de altitude. Tudo se alterava. A velocidade do jogo, do nosso time, da bola. A respiração mudava, surgia a falta de ar. Lembro que fiz algumas defesas importantes até que Bruno Henrique encontrou Gabigol, que marcou 1 a 0. Vitória! Que vitória contra o San José. Isso nos deu moral. E deu.
Vencemos a LDU, perdemos para o Peñarol e vencemos o San José novamente nos três jogos seguintes. Devido ao tropeço em casa, precisávamos de um ponto em duas rodadas. Perdemos para a LDU e fomos enfrentar o Peñarol em Montevidéu, necessitando de um ponto para nos classificar. Depois de muito sufoco, esse ponto veio. E a vaga também.
Passei muito tempo ouvindo que o Flamengo não tinha tradição em Libertadores. Nas oitavas de final, tão traumáticas como em anos anteriores, voltaríamos a sofrer. Mas não apenas com o resultado. Com uma grave lesão de um amigo. A derrota por 2 a 0 para o Emelec foi o de menos. Vimos nosso capitão, líder e amigo Diego Ribas quebrar a perna. Foi um golpe duro.
Os 2 a 0 da derrota pesavam? Sim. Mas sabíamos que conseguiríamos reverter. Focamos no Campeonato Brasileiro, vencemos o Botafogo em um domingo e jogamos na quarta contra o Emelec no Maracanã. E foi aí que viramos a chave.
Não se falava em outra coisa além de vitória, classificação. A preparação foi especial. O clima positivo trouxe confiança. Eu senti isso desde que entrei para aquecer. Mais uma vez foi sofrido? Sim. Abrimos 2 a 0 e, quando achamos que íamos aumentar a vantagem, o jogo parou. Não andou mais. E foi assim até os pênaltis.
Sempre tive fama de pegar pênaltis. Na Espanha, defendi cobranças de Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, mas os jogos não eram eliminatórios. Desta vez era diferente. O goleiro precisa aparecer nesses momentos. Era a minha hora no Flamengo.
Naquele momento de tensão, lembro que Jorge Jesus veio me explicar onde cada jogador costumava bater. Eu disse a ele: ‘deixa eu concentrar’. Ele entendeu. Respeitou. As duas primeiras cobranças não consegui defender. Do nosso lado, Arrascaeta e Bruno Henrique marcaram. Era a vez do Renê. Só de lembrar da cobrança dele, fico nervoso agora. E sei que você, ao ler esta carta, também fica. Era a metade da disputa, 2 a 2 no placar. Um erro poderia mudar nosso destino. Mas eu confiava no Renê. Meus companheiros sabiam da qualidade dele. E Renê foi lentamente para a bola até a hora do chute. E fez a melhor cobrança da disputa. Brinco que ele está nervoso até hoje. Ele veio em minha direção e disse que eu iria pegar o próximo.
Quem foi para a bola foi Dixon Arroyo. Muitos podem não lembrar, mas era o mesmo jogador que machucou Diego Ribas na ida. Por ironia do destino, eu peguei o pênalti dele. Costumo não comemorar cobranças antes do término. Continuei concentrado, mas fiz minha parte. Um eu iria pegar.
Quando Rafinha foi para a bola e fez o dele, abrindo 4 a 2, a torcida cantava que eu era o melhor goleiro do Brasil. Procuro não me desconcentrar com isso. Se o Emelec perdesse, avançaríamos. Quando Queiroz acertou a trave, aí sim eu comemorei. Eu e mais de 40 milhões de pessoas no mundo.
Eu afirmo: se fosse em outros anos, talvez não estivéssemos preparados para avançar naquele momento, com aquela tensão. Mas aquele grupo em 2019 estava muito preparado. E ali, diante da nossa torcida, cada membro daquele elenco começava a mudar sua história no clube.
Quando enfrentamos primeiro o Internacional e depois o Grêmio, veio aquilo que sempre ouvi desde que cheguei ao clube: ‘O Flamengo não era copeiro’. Eliminamos o Inter jogando melhor dentro e fora de casa. Sofremos no final, mas nosso time conseguiu esfriar a pressão do adversário e garantimos a vaga. Uma semifinal de novo após tanto tempo. Algo inédito para uma geração de torcedores.
Era o Grêmio pela frente. Campeão em 2017. Semifinalista em 2018. Provocações de cada lado entre Renato Gaúcho e Jorge Jesus. Quem tinha o melhor futebol do país? O duelo mostrou que éramos nós.
Renato é um grande cara, querido por todos quando veio trabalhar conosco dois anos depois. Mas ele mexeu com alguém que estava quieto, no caso Jorge Jesus. Estávamos muito motivados e preparados para aquele duelo. Sabíamos tudo o que o Grêmio faria. O 1 a 1 na ida não refletiu nosso desempenho. Tivemos 3 gols anulados que em tempos sem VAR não teriam sido anulados. Digo que foi o melhor jogo daquela geração.
Entretanto, um time que busca ser campeão precisa ter um goleiro que faça a diferença em momentos delicados. E foi o que fiz quando fiquei cara a cara com Everton Cebolinha. Uma defesa magistral em um chute forte, cruzado, ainda com o placar zerado. Considero aquela defesa como a defesa da Libertadores.
Fizemos 1 a 0 com Bruno Henrique, levamos o empate e saímos de lá com uma expectativa alta para o jogo de volta. O 5 a 0 no Maracanã coroou um time que praticava o melhor futebol do Brasil. Era uma expectativa gigantesca sobre tudo o que uma final de Libertadores poderia proporcionar para todos nós.
E vivenciamos isso no AeroFla. Uma loucura. Fomos carregados do Ninho ao Galeão pela torcida do Flamengo. Nunca havia vivido aquilo em lugar algum do mundo.
Finalmente, chega a final, o dia 23 de novembro que mencionamos anteriormente. Sofremos bastante contra o River Plate no primeiro tempo. Nosso jogo não encaixava. Sofremos um gol bobo. Mas em nenhum momento perdemos a concentração no que trabalhamos para executar em campo.
O tempo passava. A tensão aumentava. O time mudava as peças, mas quem permanecia mantinha o padrão de organização. Esse era nosso diferencial. E foi dessa forma que chegamos ao gol de empate. Não sabíamos que faltava tão pouco tempo quando Diego pressionou, Arrasca deu o carrinho e encontrou Bruno. Do gol, eu disse: ‘Bruno, vá para o gol’. Éramos cinco contra três. Mas Bruno parou. E fez uma mágica até a bola chegar em Arrasca, que deu um carrinho e encontrou Gabi. 1 a 1. Que alívio. Que emoção.
Lembro que Everton Ribeiro veio até mim e disse: ‘vamos segurar e ganhar na prorrogação. Eles estão mortos’. No calor do jogo, eu respondi: ‘tudo bem. Vamos administrar’. Toquei a bola para Rafinha, que jogou em Rodrigo Caio, que voltou para Rafinha. E a bola chegou até Diego. Diego avançou e lançou para Gabigol, que disputou com Pinola. Gol.
Se o primeiro gol foi uma explosão, o segundo foi diferente. Não teve o mesmo ambiente. Alguns ainda comemoravam o primeiro gol. Mas a maioria chorava. Um grito abafado pelas lágrimas. Era um sentimento que apenas quem viu a geração do Zico pode expressar. 38 anos depois. No mesmo dia em que os ídolos imortais conquistaram a primeira Libertadores, quis o destino que tivéssemos a honra de acabar com um jejum de 38 anos na mesma data.
Na hora de levantar a taça, ficou a dúvida: quem levantaria? Ribas, Ribeiro e eu fomos capitães em algum momento daquele ano. A cena de nós três levantando a taça juntos marcou aquela geração. Foi um momento perfeito para consagrar a união daquele grupo que se tornou uma família.
Ah, e lembro daquela fase inicial, onde volto a afirmar. Agora ela fez sentido. ‘Muitos passaram, muitos tentam, mas poucos entram para a história’. Depois disso, conquistamos muitas outras vezes. Mas não como em 2019. É algo que não se repetirá. Não dá para esquecer. E valeu muito a pena. Obrigado, Flamengo — afirmou Diego Alves, em depoimento a Vinicius Ribeiro, da ‘ESPN’.
Publicado em colunadofla.com
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