Os “irmãos Karamazov” do futebol brasileiro, como cunhou o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues em referência ao livro do escritor russo Fiódor Dostoiévski, têm mais um encontro hoje no Maracanã, às 21h30, na final da Taça Rio, que também pode decidir o título do Carioca em caso de vitória rubro-negra. O Fla-Flu desta noite já ganha ares de novo capítulo do clássico centenário que, ao longo da história, coloca os dois clubes em posições contrárias além das quatro linhas. O jogo será transmitido pelo canal do Flu no Youtube.

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Não tanto pela diferença física e técnica mostradas até aqui, o “Fla-Flu da pandemia” tende a ficar marcado pelos lados escolhidos pelos clubes: durante a crise que já vitimou 10 mil pessoas no estado, as diretorias optaram por caminhos distintos. O tricolor — que hoje não terá Fred e Ganso, machucados — brigou para adiar o retorno do futebol ao lado do Botafogo. Também evitou jogos no Maracanã, que abriga um hospital de campanha — hoje jogará lá por força do contrato, segundo o clube.

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Já o Flamengo liderou o movimento de volta aos jogos, angariando apoio dos governos federal, estadual e municipal. O retorno aos treinos, um mês antes do tricolor, se deu, inclusive, antes da permissão das autoridades locais por escrito. As posições dissonantes dos clubes levaram a um Fla-Flu nas redes sociais.

A própria identidade do Fla-Flu se sustenta nas diferenças simbólicas desde o nascimento. Ao mesmo tempo, são complementares. A criação de um a partir do outro é a base da dicotomia do clássico. As discordâncias tricolores que deram origem ao futebol rubro-negro, em 1911, podem ser consideradas o primeiro Fla-Flu, antes mesmo de a bola rolar. Jogadores do futebol tricolor se desentenderam e decidiram implementar o esporte no então famoso clube de remo.

Flamengo 0 x 1 Fluminene, pelo Campeonato Estadual em 1984 Foto: Agência O Globo

Anos mais tarde, a rivalidade em campo e nas arquibancadas viria à tona. Apesar de o Flu ter abraçado a presença do Flamengo na liga profissional do Rio e a troca de jogadores entre os clubes ser constante, é no momento do profissionalismo, nos anos 1930, que as diferenças são definidas.

Num contexto de projeto nacionalista e da criação da identidade nacional do governo federal, o rubro-negro, um clube de elite, encarna a classe operária nas arquibancadas; o tricolor mantém-se como representante da aristocracia.

Sob essas identidades, Flamengo e Fluminense se distanciaram e se uniram no campo político e ideológico por diversas vezes no clássico que completou 108 anos ontem. Já estiveram juntos contra a Ferj na criação da Primeira Liga, em 2016; e brigaram pelo comando do Maracanã a partir da desistência da Odebrecht.

56932154_Juiz-de-Fora-MG-20042016-FutebolFluminense-x-Atletico-PRPartida-entre-Fluminense-e-At Em lados opostos na pandemia, Flamengo e Fluminense têm longa história de brigas e afagos
Fluminense é campeão da Primeira Liga, em 2016 Foto: Rudy Trindade / Agência O Globo

O caso mais emblemático, no entanto, é o confronto decisivo da Taça Guanabara em 1984, vencido pelo rubro-negro, com gol de Adílio. Conhecido como “Fla-Flu das Diretas”, colocou os clubes em lados antagônicos no momento da redemocratização. A emenda de eleições diretas havia sido derrotada meses antes e o colégio eleitoral decidiria o novo presidente entre Tancredo Neves, da oposição e favorável ao pleito direto, e Paulo Maluf, apoiado pelo regime militar.

Na semana anterior à partida, jogadores do Fluminense se encontraram com Maluf, em Brasília, depois de visitar o presidente João Baptista Figueiredo. Na véspera do jogo, o goleiro Paulo Victor, levado pelo preparador físico Nazareno Barbosa, encontrou-se com Maluf num estúdio de TV e declarou seu apoio a ele.

A torcida rubro-negra, que criara a Fla Diretas, conquistou apoio dos dirigentes, que abraçaram Tancredo. Nas arquibancadas, as torcidas se uniram e levaram faixas a favor do mineiro, uma delas icônica: “O Flamengo não malufa”.

Concordando em discordar, Fla e Flu escrevem hoje mais um capítulo desta história. Não há quem discorde que um não vive sem o outro.