Nos últimos anos, a questão da psicologia virou tema de debate no Flamengo. O clube não tem um profissional da área na comissão técnica desde 2020, dos tempos de Jorge Jesus. Porém, alguns atletas e ex-jogadores rubro-negros procuram, fora do Ninho do Urubu, especialistas em saúde mental para melhores resultados dentro campo. Pensando nisso, o Coluna do Fla procurou um conhecedor do assunto e traz entrevista exclusiva sobre a temática.A reportagem conversou com Lulinha Tavares, ‘personal mind’ ou preparador mental de atletas. O profissional tem dois clientes no Flamengo: Everton Cebolinha e Matheuzinho. Além disso, o profissional trabalha diretamente com Andreas Pereira, que jogou no Rubro-Negro em 2021 e 2022.Lulinha Tavares contou bastidores de como auxiliou Andreas Pereira após a falha na Libertadores 2021. Ainda, o personal mind destrinchou a importância do trabalho mental para ajudar Matheuzinho, que sofreu grave lesão no início do ano. Nesse ínterim, Everton Cebolinha foi tema da conversa, com direito à lembrança de Tite, que contribuiu para que o atacante a retomasse a confiança.— Você precisa tratar. Não adianta simplesmente você cobrir essa ferida, encobri-la com um pano, vedá-la ou jogar sob o tapete. Quando você começa a tratar e encontra soluções para tudo que você quer, é possível encontrar soluções para que o atleta se reerga, e assim, felizmente, foi o que aconteceu com o Andreas Pereira -, disse Lulinha, com exclusividade para o Coluna do Fla.— O Tite é um treinador que vai além da questão técnica, da questão tática, da questão física. Ele também aborda o lado humano e, em sendo assim, precisa tratar os atletas, não tratar todo mundo igual. Tratar todo mundo igual é a maneira mais desigual que tem, porque não existe ninguém igual -, acrescentou Lulinha.Confira, na íntegra, todas as respostas de Lulinha Tavares ao Coluna do Fla. Além de Andreas Pereira, Tite, Matheuzinho e Everton Cebolinha, o personal mind falou de outros temas. O profissional destacou a importância do trabalho mental para atletas que estão em alta, a pressão ‘extra’ que só o Flamengo tem e a resistência cada vez menor no futebol para diálogos sobre saúde mental no esporte.ANDREAS PEREIRAUm incidente daquele traumatiza o atleta, como aconteceu com o Vitor Roque em 2021, quando nós começamos o trabalho. Ele entrou no segundo tempo, foi substituído, e aquilo que era para ser uma festa acabou causando um trauma na vida do atleta. Foi no dia 12 de outubro de 2021, quando o Vitor Roque estreia, primeiro a jogar aos 16 anos pelo Cruzeiro depois de Ronaldo Fenômeno.No caso do Vitor Roque, foi uma situação dele ter jogado mal e ter sido substituído. No caso do Andreas, foi um incidente que causou na mente, na alma do atleta, uma dor muito grande, uma decepção, uma frustração e, além disso, não fica no ambiente do campo, se prolonga ao longo dos meses essa pressão.Ela continua no extracampo, em cada notícia que ele lê, em cada site que ele olha, essa pressão vai para a palma da mão. Então é importante que esse atleta busque uma ajuda rápida, especializada, para que ele possa se abrir… é como se tivesse uma ferida, né?Você precisa tratar, não adianta simplesmente você cobrir essa ferida, encobri-la com um pano, vedá-la ou jogar debaixo do tapete, como as pessoas dizem, quando você começa a tratar, e encontrar soluções para tudo que você quer, uma ferramenta você tem, você consegue encontrar soluções para que o atleta se reerga, e assim, felizmente, foi o que aconteceu com o Andreas Pereira.
Ele veio para o nosso trabalho por indicação do Andreas Pereira. Eu atendo o Matheus há pouco mais de um ano. Quando iniciamos, ele tinha perdido a titularidade para o Rodinei, que teve um grande 2022. Ele (Matheuzinho) estava num momento incômodo na reserva, experimentando isso depois de quase 100 jogos pelo Flamengo, ainda muito jovem, precisava gerenciar melhor as suas emoções.Então, primeiro nós nos conhecemos, depois nós estabelecemos metas muito claras para a sua vida. Um plano definido, definir aquilo que precisava fazer, que precisava deixar de fazer e dar os primeiros passos, principalmente focando total e absolutamente nas variáveis que possam ser controladas.Ou seja, aquilo que só depende dele fazer. E, dentre essas coisas, tem os ajustes mentais e comportamentais, estabelecer como tarefa de treino, de jogo, comportamento fora de campo, todos esses ajustes você vai fazendo ao longo do tempo. Assim foi feito e ele terminou o ano jogando: Rodinei na Libertadores, e ele (Matheuzinho) no Campeonato Brasileiro. Estabelecemos como meta iniciar 2023 como titular.Assim aconteceu, mas depois veio o episódio da contusão. Então, recomeçamos, recalculamos a rota, fizemos um plano, e ele foi seguindo fielmente. Lógico que vivendo coisas novas, que é a situação da lesão, onde ele precisou experimentar e desenvolver ainda mais a resiliência. Além disso, também, a paciência, controlar a ansiedade, manter o nível de concentração alto, manter o ritmo de treino intenso, forte e aguardar a oportunidade.
Um atleta que chega no status que ele chegou no clube da grandeza do Flamengo gera em si uma pressão interna, além da pressão externa que já existe e está muito clara. Ocorre uma pressão interna no atleta que nem sempre consegue administrar isso muito bem.Logicamente, teve um período de baixa, em quase um ano, desempenho dele não foi o que esperava e logicamente que a parte mental foi afetada. Isso acabou, também, influenciando nesse primeiro ano dele no clube.IMPORTÂNCIA DE TITE PARA O CEBOLINHAÉ importante a gente entender que o nosso negócio não é futebol, o nosso negócio é gente. Então, a humanização do trabalho aumenta a produtividade em todos os lugares, no futebol também. Então, observem o que acontece, por exemplo, com o (Fernando) Diniz, no Fluminense. Ele provoca um nível de competitividade alto entre todos os atletas, e todos o querem bem, embora o nível de cobrança seja alto.E tanto ele quanto o Tite exercem um papel de paizão, como também o Pep Guardiola. Ele é um treinador que vai além da questão técnica, da questão tática, da questão física. Ele também aborda o lado humano e, em sendo assim, precisa tratar os atletas, não tratar todo mundo igual. Tratar todo mundo igual é a maneira mais desigual que tem, porque não existe ninguém igual.Então, quando o treinador tem esse olhar, ele exerce, sim, um grande papel humano e que certamente aumenta a confiança do atleta, ajuda a recuperar a autoestima, a autoconfiança. E ele, juntamente com isso, você tendo um trabalho especializado de preparação mental, pode contribuir ainda mais para o aumento do rendimento do atleta.TRABALHO MENTAL PARA QUEM ESTÁ NO TOPO (EXEMPLO: GINASTA SIMONE BILES)O caso da Simone Biles traz à tona essa discussão e a pergunta que a gente faz em relação a isso é: “você precisa estar doente para cuidar da sua saúde?”. Não. A ideia que se tem de um atleta, dele procurar uma ajuda para a parte mental somente quando está com um problema, é uma ideia equivocada.Quando se fala em alta performance, não se fala simplesmente em saúde mental, se fala em performance mental, se fala em resistência mental, em treinar a sua mente, você conhecer um pouco mais a sua mente e entender que a mente mente, que a mente te sabota, que você tem que dominar sobre ela.É importante que quando a gente fala que era a principal atleta da delegação americana, não era a principal atleta simplesmente. Acho que sim, da delegação americana e muitas vezes ela precisa parar para tratar como se tivesse tido uma ‘contusão’ mental, vamos dizer assim, se a gente for fazer uma analogia em relação à parte muscular, por exemplo, então traz à tona esse tema e mostra-se que você pode treinar a sua parte mental.Buscar aperfeiçoamento mental para que você se adapte, para que você se ajuste, para que você suporte as pressões e que você mantenha a alta performance diante de qualquer adversidade também, sob o ponto de vista mental.
O trabalho mental que fazemos pode ser explicado da seguinte maneira: nós preparamos atletas para o sucesso e para as suas armadilhas, nós ajudamos o atleta a refletir, planejar e agir para ele alcançar as suas metas e melhorar os seus resultados. Conversamos com os atletas pelo menos uma vez por semana, uma hora, os encontros são presenciais ou são online, na maioria das vezes os atletas me procuram de uns anos para cá. E não só os atletas. está aumentando a procura por parte de pais de atletas, por parte de agentes, ou seja, empresários de atletas, e às vezes também dirigentes de clube que nos procuram para que nós também atendamos. Grupos de atletas de maneira coletiva, então nós nos reunimos, nós conversamos, a gente ouve muito os atletas, fazemos as análises, trabalhamos de maneira personalizada para que ele tenha aí as suas metas traçadas, suas tarefas diárias para cumprir em relação aos seus objetivos, tem as métricas que nós utilizamos para que a gente acompanhe a evolução do nosso trabalho.
Tive a oportunidade de ser atleta na base do Flamengo e também de trabalhar já como preparador mental de atletas no Flamengo, em 2013, fazia parte da comissão técnica do Jorginho, passei três meses trabalhando no Flamengo. E realmente trabalhar em clubes de grande porte, como é o Flamengo, realmente é diferente. A pressão é maior, em todos os níveis, tanto no ambiente interno, quanto no ambiente externo.Tanto no dia a dia quanto no que diz respeito à pressão que existe nas mídias sociais, por ser um ‘canhão’ nesse sentido, onde realmente o processo acaba sendo afetado por esse ambiente de pressão, mas que você se adapta e consegue trabalhar e render nesse universo, mas é um universo fascinante.
O primeiro passo para você atender um atleta que acabou de sofrer uma grande decepção, uma perda, uma lesão, no caso de um atleta que sofre um LCA (Lesão do Ligamento Cruzado Anterior), que vai ficar oito, nove, dez meses, um ano parado, é você em primeiro lugar se aproximar do atleta.Acolhê-lo, ouvi-lo, criar uma sinergia com ele, um ambiente de confiança, mostrar histórias que já funcionaram com atletas e que deram certo, entender como diz que não teve essa experiência com ele foi a primeira vez, como no caso do Andreas Pereira, aquele erro na final da Libertadores, foi a primeira experiência que ele viveu naquele sentido. Ou como no caso de um atleta que lesiona gravemente pela primeira vez, a gente fala nisso nos modelos de competência.De competência consciente, competência inconsciente, que é “eu nem sei que não sei”, “eu nem sei que sei”, então os atletas descobrem, “eu nem sabia que sabia lidar com isso”, muitos atletas amadurecem, crescem e aproveitam muito esse período da lesão, como foi o caso do Ronaldo ‘Fenômeno’ e de outros atletas de uma maneira geral, assim como muitos jogadores trazem depois para o lado positivo, a experiência negativa que ele viveu.Assim aconteceu com Andreas Pereira, que é bom lembrar, que ainda antes de sair do Flamengo já tinha se recuperado mentalmente, emocionalmente, mesmo diante da pressão que estava sobre ele, conseguiu virar esse jogo e saiu daqui, eu me recordo de uma entrevista do Dorival Júnior que dizia: “a maior contratação do Flamengo nesse momento seria a permanência do Andreas Pereira”.
Nos últimos anos para cá, a resistência diminuiu muito em relação ao trato desse assunto, aos atletas. As pessoas do mundo esportivo falarem mais sobre esse assunto e também buscarem ajuda. Eu já trabalho nesse segmento há 15 anos, a resistência já foi muito maior. Já trabalhei em lugares, em clube de futebol, onde eu precisava entrar escondido, eu não podia falar de jeito nenhum com a imprensa, ninguém poderia saber que o clube estava fazendo um trabalho mental.Esse paradigma está sendo mudado, um dos que mais contribuíram com isso foi o Cristiano Ronaldo, que começou a dizer muito, em todo lugar, que aquilo que ele tem de melhor é a sua mentalidade, atletas começaram a falar das suas dores, começaram a falar primeiro da dor e do cuidado com a saúde mental e depois os atletas começaram a falar quanto importante é para sua performance, para a melhoria da performance.Para ele criar uma mentalidade vencedora, uma mentalidade empreendedora, como é que você treina, treinar as suas emoções. Então essa resistência está reduzindo cada vez mais e a gente vê uma mudança de paradigma nos últimos anos em relação a isso.
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