Incêndio no Flamengo: familiares dos garotos do Ninho contam sobre o ano de luto


A busca pelo recomeço sem esquecer o passado, de futuro melhor sob o peso da saudade, marcou os últimos 12 meses das famílias dos 10 jovens da base do Flamengo vítimas do incêndio no CT Ninho do Urubu, em 8 de fevereiro de 2019 – data que completa um ano neste sábado.

Eles convivem com a dor da perda de filhos, netos e seguem na luta por indenizações. Até o momento, o clube só chegou a quatro acordos. Alguns estão em andamento e há quem optou por ações judiciais. Cada família busca uma forma de superar a perda, mas algo é comum a todas: a saudade, a ausência.

Nos textos a seguir, familiares contam como lidam com o luto há ano.


Marilia Barros via em Arthur Vinicius a razão de sua felicidade. Mãe do jovem, a moradora de Volta Redonda vive hoje o que chama de “vida de adaptação”.

— A dor e a saudade aumentam a cada dia. A gente sofre com a falta do Arthur. Tem que seguir, não podemos desanimar, não podemos desistir. Então a gente segue com dor e saudade –, diz a mãe, que mantém rotina religiosa na igreja da cidade.

Um ano depois da tragédia, Dona Marilia lembra que o menino faria 15 anos no dia seguinte ao incêndio, e queria ter voltado para casa para comemorar o aniversário. O zagueiro era filho único, tudo o que a mãe tinha.

— Vivo mais por ele, que era companheiro demais, ele não gostaria de me ver triste, desanimada. A gente tinha uma ligação muito forte. Ele era a razão da minha felicidade, fazia tudo para ele – lembra.

Tudo inclui fazer valer o sonho do filho de ser jogador de futebol. Hoje sem advogado, Dona Marília ainda não descarta um entendimento com o clube.

— Sou uma das famílias que não chegou a acordo, gostaria de fazê-lo, mas não pelo valor que eles oferecem. Nenhum valor vai trazer meu filho de volta. Mas penso que a gente tem que ter algo mais digno e justo, e isso falta – defende.

Uma das lembranças de Marilia é de um diálogo com um funcionário do Flamengo quando deixou o filho no Ninho antes de ele ficar por um ano e dez meses. A preocupação da mãe era com a violência no Rio de Janeiro, não com a falta de condições de alojamento.

— Quando fui conhecer, fiquei emocionada, o diretor da base perguntou porque eu estava chorando. Onde eu achei que ele estava mais seguro foi onde perdi o meu filho. E isso dói – emociona-se.

A mãe de Arthur Vinicius pede mais empatia do Flamengo e de sua diretoria, composta por pais de família:

— Eles tinham que se colocar nos nossos lugares, são pais também. Eles não têm noção do que é perder um filho, ainda mais do jeito que perdemos os nossos.


Diana de Souza sempre sonhou em fazer uma grande comemoração nos 15 anos do seu filho, Áthila Paixão. Ele faria aniversário em 11 de março, mas o incêndio no CT do Flamengo impediu que ele completasse mais um ano de vida:

— Eu sonhei em comemorar essa data de outra forma. Nunca imaginei ter que levar flores para ele no cemitério.

Antes do alojamento do CT do Flamengo ser tomado por chamas, Áthila tinha acabado de voltar para o Rio após as férias com a família em sua cidade natal, em Largato, interior sergipano. Assim que ele partiu rumo a mais uma temporada do sonho de ser jogador profissional, sua mãe já estava ansiosa para o ver o filho novamente.

— Todos os dias são difíceis, não tem um dia que eu não me lembre dele. Na data que era para ele estar aqui de férias doeu muito, pois eu contava os dias pra vê-lo, para abraçá-lo.

Segundo a mãe, Áthila tinha talento e futuro promissor no futebol. Se o incêndio não tivesse acontecido, o último ano teria sido de muitas conquistas. Para tentar suportar a realidade da forma que lhe foi imposta, Diana faz acompanhamento psicológico e vive à base de remédios.

Em um ano, muitas coisas mudaram na vida da família, que foi para outra cidade tentar um recomeço. Hoje vivem na capital, Aracaju, mas carrega a saudade do filho para todos os lugares.

— Infelizmente ainda não aprendi a viver sem meu filho. Cada dia que passa, a saudade aumenta. Aonde quer que eu vá lembrarei dele. Áthila hoje é um anjo, está sob os cuidados de Deus.


Em meio a discussões sobre valores de indenização para as famílias das vítimas do incêndio no CT do Flamengo, o pai de Bernardo Pisetta, Darnlei Pisetta, reforça que o período passou sem que os dirigentes do clube tratassem o caso com sensibilidade, respeito e carinho. Mais do que chegar a um acordo financeiro, o representante do goleiro acredita que o clube, através do presidente Rodolfo Landim, deveria ter estado mais perto.

— A mágoa com a diretoria é por não receber um abraço amigo, uma palavra sequer — diz.

Segundo Danrlei, a presença de advogados mediando a relação entre clube e famílias partiu do próprio Flamengo. Na primeira reunião de conciliação, no Ministério Público, há um ano, as famílias receberam a informação de que só entraria na sala quem estivesse com um representante legal.

— Eles começaram com coisa de advogado. Cheguei para a reunião de conciliação e só podia entrar com advogado. Eles criaram a situação. As famílias queriam acertar amigavelmente — relembra o pai do jovem goleiro, que está prestes a ir à Justiça, mas ainda crê em acordo:

— Eu ainda quero. Não quero judicializar. Mas se for necessário, vamos fazer isso.

Natural do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, a família Pisetta recebe hoje pensão mensal de R$ 10 mil, determinada pela Justiça enquanto não chega a um consenso com o Flamengo. O clube paga tratamento psicológico, e Darnlei diz que também precisa de fisioterapia em função da depressão após a perda do filho.

Mesmo assim, foi ao Rio pela última vez na partida entre Flamengo e Grêmio, pela Libertadores, no Maracanã, em uma das tentativas de acordo. O pai de Bernardo conta que foi bem tratado no clube, esteve no Ninho do Urubu e na Gávea, mas conversou apenas com pessoas do setor de Recursos Humanos. O único dirigente com quem falou foi na ocasião do incêndio, quando esteve com Vitor Zanelli, que responde pela base.

— Gostaria de transmitir ao presidente Landim que, no dia em que ele vier na minha casa, ele será recebido por mim pela porta da frente. A gente gostaria de ser tratado assim, ser recebido por ele, mas infelizmente isso não aconteceu – diz Danrlei.

— Quem sabe um dia eles coloquem a mão na consciência e possam ver que poderiam ter resolvido a situação com as famílias mais rápido. Todos querem um abraço, um respeito. Isso é o que mais falta.

Ao lado da esposa e dos outros filhos, o pai de Bernardo Pisetta trata o ano que passou como um ensinamento. E se agarra na fé e nas pessoas próximas para seguir.

— Com certeza a vida não será mais a mesma. Sempre irá faltar alguém. Mas a vida continua. Não podemos também abandonar a vida. Temos mais pessoas que amamos, mais filhos, esposa, pai e mãe. Tem que dar continuidade. Mas não é fácil – reconhece.

Além de tirar forças para ir em frente, Danrlei cobra não só do Flamengo, mas de entidades como a CBF e a Ferj, que passado um ano não puniram o clube:

— Trataram isso como um caso normal, não houve nenhuma punição. Fizeram uma notinha de pesar. Isso é vergonhoso.


Cristiano Esmerio, 40 anos, e a esposa Andrea, são separados, mas vivem juntos a dor da perda do filho, Christian, que era goleiro da base do Flamengo. Os pais do jovem talento, que tinha passagem pela seleção de base, representam uma das famílias que ainda pretendem ir à Justiça contra o clube. O pedido de indenização deve chegar a R$ 9 milhões, segundo o advogado Márcio Costa.

— O Flamengo não fez oferta nenhuma. A gente fica até assustado, vai fazer um ano e não procuraram para nada. Quem fala que a gente quer ficar rico não sabe de nada. Quem tem que se sensibilizar são eles que mataram meu filho — afirma o pai, Cristiano.

Morador de Colégio, em Irajá, Zona Norte do Rio, ele vive de trabalhos sem carteira, como manutenções e eventos. Andrea, por sua vez, é frentista. E já está esgotada de falar sobre a perda do filho. O pai de Christian, que era o filho do meio, ainda precisa batalhar para sustentar um filho mais velho, Cristiano Junior, 19 anos, um adotivo de 17, Alessandro, e um casal de gêmeos de três anos, Leandro e Lavínia. A mãe do ex-goleiro e o mais velho ainda fazem acompanhamento psicológico, bancado pelo Flamengo após pedidos da família.

— A vida segue, tenho mais quatro filhos, não posso parar. Mas é muito difícil – conta o pai de Christian, que nutre pensamentos comuns a quem perde um filho. — Se Deus me desse oportunidade eu iria no lugar dele.

O ano passou e o quarto de Cristian na casa de Andrea ainda existe, onde a família guarda fotos, troféus e camisas. Tudo que o goleiro deixou de legado. Por ser promissor no clube e na carreira, o entendimento é que o acordo oferecido pelo Flamengo não é justo. Os pais recebem hoje os R$ 10 mil determinados pela Justiça.

— Esse ano pra mim foi de decepção, não precisava nem existir no calendário. É um ano que não tem representação nenhuma. Não teve um momento que eu consegui sorrir sem o meu filho, não vou conseguir para o resto da minha vida — emociona-se Cristiano.

A maior cobrança não é por indenização, mas por responsabilização pelas mortes.

— Indignação é muito grande. Um acidente desse porte, não conseguirem um laudo pericial até hoje? Não tem responsáveis, não tem culpado — diz o pai de Christian.

Segundo ele, quem fechou acordo o fez após procurar o Flamengo. O clube não teria buscado contato com quem se recusou a aceitar os valores oferecidos. Questionado se ir à Justiça não pode arrastar o sofrimento, Cristiano disse não se importar.

— Não tem valor que vá devolver a vida do meu filho. A Justiça tarda mas não falha. Pode demorar já que ele não vai voltar. Para mim é indiferente — afirma, antes de deixar claro que não vai até o clube fazer mais oferta.

— Quem deve explicação é o Flamengo. Eles têm de procurar. Meu filho estava lá. Eles tiram a vida do meu filho e nove crianças e viram as costas pra gente? Eu que vou bater na porta deles? Vou não.


Em meio ao sofrimento de perder alguém que se ama, uma nova vida chega para amenizar a tristeza. Teresa Cristina é mãe de Gedson Santos, uma das vítimas do incêndio no CT do Flamengo, e alguns dias depois de perder seu primeiro filho, ela ficou grávida do terceiro. Gael tem dois meses de vida, e apesar de muito jovem, já tem traços do irmão que se foi:

— Ainda é um pouco cedo para dizer que é igual ao Gedinho, mas tem algumas coisas que lembram muito ele. Gael veio para acrescentar, não para substituir o Gedinho, mas com certeza para amenizar a tristeza.

Mesmo com a alegria da chegada de uma vida nova, é difícil seguir em frente. O sofrimento é diário, mas alguns dias são mais dolorosos do que outros:

— Todas as sextas-feiras eu sofro bastante. O acidente foi numa sexta, e saber que o coração do seu filho parou de bater naquele dia desaba o seu mundo, tira completamente o seu chão.

Um ano após a tragédia, Teresa ainda não se acostumou com a ideia de não ter mais Gedinho por perto. Os últimos meses deveriam ter sido de amor e dedicação a Gedinho, Geraldo e Gael, mas a mãe não teve a oportunidade de ver os três filhos juntos.

Gedinho, faria 16 anos em 27 de março. A data costumava ser de alegria mesmo com muita saudade, já que nessa época o garoto estava treinando longe da família, que é de Itararé, São Paulo. Dessa vez, não haverá comemoração, nem ao menos um telefonema no fim do dia:

— Assim como no ano passado, eu e meu esposo iremos ao cemitério prestar nossa homenagem pelo privilégio de termos convivido e aprendido muito com ele.

A família de Gedinho é uma das três que fizeram uma negociação com o Flamengo após o incêndio. Teresa disse que aceitou o acordo por diversos motivos, entre eles dar um basta no assunto que os machuca tanto:

— Mas que fique bem claro: não é porque fizemos o acordo que vamos esquecer o que fizeram com nosso filho e aos outros garotos.


Concluir a casa nova é uma meta de quem procura melhorar de vida. Para Alba Valéria, é honrar a memória de Jorge Eduardo, o filho perdido no incêndio do Ninho do Urubu. O zagueiro, que estava a seis dias de completar 16 anos e assinar o primeiro contrato profissional, já sabia o que fazer com os primeiros salários.

— Ele falava: “Mãe, quando assinar meu contrato vou fazer a casa para você e meu pai” – lembra Alba.

Merendeira numa escola estadual de Além Paraíba-MG, ela já decidiu que a casa nova terá um quarto para o filho perdido. Todos os seus pertences seguem guardados no mesmo lugar, como se o 8 de fevereiro não tivesse ocorrido. O problema é que Jorge Eduardo não está mais lá para ocupá-lo. Um vazio que gera saudade e indignação:

— Queria que você incluísse aí uma pergunta que eu gostaria de fazer aos diretores do Flamengo: “Quando eles deitam a cabeça no travesseiro conseguem ter a consciência tranquila?”.

A revolta vem de uma mulher que, ao mesmo tempo em que lidou com o luto, precisou consolar o outro filho, Carlos Augusto, e o marido. Com um histórico de perdas traumáticas (o pai morrera num acidente de trânsito; e a mãe, em decorrência de complicações ocorridas durante um exame médico), o mecânico Wanderlei Dias entrou em choque ao perder o filho nas mesmas circunstâncias.

— Ele não queria comer e ficou dois meses sem trabalhar — conta Alba. — Ele dizia que tinha medo de voltar e botar a vida dos outros em risco.

Com a ajuda de Alba e dos amigos, Wanderlei voltou a fazer o que gosta. Apoio, por sinal, é que o não falta em Além Paraíba. Como homenagem, os colegas de Jorge Eduardo montaram o JE Futebol Clube para a disputa de campeonatos amadores.

Na final do campeonato de bairros, o JEFC foi derrotado nos pênaltis. Mas encheu Alba de orgulho. Nas cores verde e branco e com uma águia e uma estrela no escudo, mantém a memória (e o nome) de Jorge Eduardo vivos.


Uma estrelinha. Para a pequena Manuela é o que seu tio, Pablo Henrique, se tornou. Foi a forma que a família do zagueiro encontrou para explicar sua morte à menina de apenas quatro anos.

— Ela era muito apegada ao tio. Sempre pergunta por ele, o chama. Já a levamos ao psicólogo. Falamos para ela que ele virou uma estrelinha. Ela diz que quer ser uma também para estar perto dele — conta Wedson Cândido, pai do jovem morto aos 14 anos no incêndio do Ninho do Urubu.

Lidar com a perda de Pablo não é um desafio apenas para Manuela. Wedson e Sara Cristina tiveram que recorrer aos remédios para seguir em frente. Se é que se pode dizer que eles conseguiram.

— Há um ano que tomo remédio. Contra depressão, contra pressão alta, para controlar a glicose… Até para dormir eu preciso deles. Não sei mais o que é ter uma noite tranquila de sono – desabafa o pai do menino.

Caminhoneiro, Wedson não exerce a profissão em decorrência dos problemas de saúde. Com Sara não é diferente. Assim como o marido, a cozinheira está sem trabalhar desde que perdeu o filho. Em Oliveira-MG, os dois vivem com a pensão que o Flamengo paga mensalmente por determinação da Justiça e da ajuda de amigos e da filha Camila, dez anos mais velha que Pablo.

— Só Deus sabe como a gente leva em frente — resume Sara.

O último ano poderia ter sido diferente. De conversas ao telefone todas as noites, quando Pablo sempre ligava para pedir a benção dos pais, e de celebração com os passos dados no Flamengo, onde ele estava havia apenas seis meses. A reviravolta ocorrida na madrugada de 8 de fevereiro só deixou tristeza. E mágoa com o Flamengo.

— Descaso total. Parece que eles não têm interesse em resolver, que os nossos filhos não tinham valor — afirma Wedson, um dos pais que ainda não chegou a um acordo com o clube.


No próximo sábado, a familia de Rosana de Souza a verá subindo ao altar novamente. A data do segundo casamento foi escolhida em homenagem ao filho Rykelmo, jovem atleta vítima do incêndio no CT do Flamengo, exatamente no dia 8.

Rosana é a única parente que entrou com ação contra o clube, pedindo R$ 6,9 milhões em indenização e pensão. O processo começou depois que o pai de Rykelmo ressurgiu após a tragédia para fechar um acordo com o Flamengo, segundo a mãe, no valor de R$ 600 mil, o que inviabilizou suas conversas – a reportagem não conseguiu contato com o pai.

— Eles se aproveitaram, ofereceram uma quantia, e o pai dele aceitou. Ele me prejudicou. Daí o Flamengo não fechou o acordo comigo, só com o pai dele. Minha advogada entrou em contato, não houve acordo, então a única coisa era entrar com a ação —afirma, depois de recusar o mesmo valor ofertado ao pai.

— O pai do Rykelmo aceitou R$ 600 mil. Eu não ia pegar. Sendo que o Rykelmo morava comigo, eu tenho a guarda. Ele recebeu esse dinheiro e eu não assinei nenhum acordo. Ele foi de gaiato. Resolveu ser pai na hora e atrapalhou.

O imbróglio jurídico promete se arrastar, já que a mãe tenta anular o acordo do pai. Enquanto isso, Rosana passou os últimos dias relembrando os momentos que teve com Rykelmo antes dele se apresentar ao Flamengo no ano passado. Era nas férias do jogador, em janeiro, que ele ajudava a mãe nos afazeres do dia a dia, como ir ao mercado em Limeira, interior de São Paulo.

— Olho para rapazes da idade dele e dá uma angústia, uma dor, mas ele foi atrás de um sonho dele.

Coletora da lavanderia de um hospital na cidade, a mãe de Rykelmo abandonou o emprego, pois não conseguia mais lidar com o vaivém de corpos, inclusive de queimados. Agora, vive de bico, enquanto mora com uma filha de 13 anos e outra de 30, no terreno da casa da mãe.

Do Flamengo, recebeu pensão de R$ 5 mil durante três meses, mas quando a Justiça determinou que o valor fosse para R$ 10 mil não teve o aumento.

— Era o sonho do Rykelmo me dar uma casa e um carro. O que o Flamengo me ofereceu não dava para fazer isso.

Em casa, a mãe guarda uma camisa antiga, já que os uniformes eram trazidos para os amigos. Sobrou também uma chuteira. E apenas uma foto. Já que o jovem que registrava os momentos com a mãe em seu celular, que pegou fogo.

Para ela, a briga na Justiça não é para ficar milionária.

— Mas meu menino tinha valor para mim. Ele sentia saudade de casa. E eu com o pensamento nele. Esse é nosso sofrimento. E o Flamengo queimou nossos sonhos, nossos desejos. E o que é de direito, pode custar o tempo que for, passo o perrengue que for, mas vou lutar.

— Flamengo é um time rico, com muitos jogadores vendidos. Um jogador que ele vende daria para pagar todas as indenizações.


A bola não parou de rolar no Jardim Meriti, em São João de Meriti. O projeto “Bom de bola”, onde Samuel Thomas Rosa deu os primeiros chutes, encontrou no futebol uma forma de lidar com o luto de seu nome mais promissor.

— A gente lida com a saudade fazendo aquilo que ele faria se estive conosco —diz Milton Rodrigues, tio de Samuel e coordenador do projeto.

O 8 de fevereiro, data em que o incêndio que matou o lateral-direito completará um ano, será lembrado com futebol. Milton organiza um pelada entre alunos do projeto e familiares do adolescente no campo do 21º BPM (São João de Meriti). O evento servirá de homenagem ao sobrinho e a Christian Esmério, goleiro também morto na tragédia e um dos melhores amigos de Samuel.

Ao não deixar a bola parar de rolar, Milton evita o abatimento. Mas nem sempre consegue:

— A saudade sempre bate. No projeto, lembro dele em campo, do grito pedindo pela bola… Em casa, às vezes, escuto o irmão dele falando e penso que é o Samuel.

Para a mãe, Cristina Rosa, o suporte para conviver com a ausência do filho veio através da igreja. Mas é difícil para todos na família não pensar no ano que não viveram. Samuel completaria 16 anos menos de dois meses após o incêndio. Já fazia planos para o primeiro contrato profissional.

— Ele falava em comprar um carro para o primo levá-lo ao Ninho do Urubu — conta Milton.

O primo e os irmãos de Samuel voltaram ao CT do Flamengo. Mas não da forma como sonhavam. Nos dias que antecederam a viagem dos rubro-negros para Lima, onde disputariam a final da Libertadores da América, eles foram até a entrada do Ninho com uma faixa em que desejavam sucesso ao time e pediam que não esquecessem os dez jovens mortos na tragédia.

— O fato de não termos aceitado a oferta do Flamengo não significa que sejamos inimigos — explica o tio.


Vitor Isaias completaria 16 anos em 1° de janeiro de 2020. Pouco antes de deixar o bairro Bom Viver, em Florianópolis, para se apresentar ao Flamengo, um dos últimos diálogos durante as férias com a avó e tutora, dona Josete, foi sobre o carro que ele pretendia comprar para ela, simples, mas com ar-condicionado.

Um ano depois do incêndio no CT Ninho do Urubu, a representante legal do jovem usou o dinheiro do acordo da indenização pago pelo clube para comprar uma caminhonete e a casa própria. A decisão de aceitar o valor de cerca de R$ 1,2 milhão do Flamengo, que também paga uma pensão mensal, aconteceu em outubro de 2019. Dona Jô foi ao Rio e decidiu, como ela mesmo diz, encerrar a sua “agonia”.

— Em 1º de janeiro ele fez 16 anos. E determinei que deixaria a alma dele em paz. Pedi perdão a Deus, só ele quem sabe. A dor nunca vai passar, mas foi uma coisa que eu aceitei, não estava aceitando. Hoje eu sei que posso ser feliz, é isso que meu filho quer ver lá — afirma. Hoje ela deixou de morar de aluguel e tem um carro zero na garagem.

— Eu estou em paz. Antes dizia pra todo mundo que eu não era feliz, mas o sonho dele foi realizado para mim. Morava de aluguel, e em outubro comprei minha casa e meu carro. A minha vida vai continuar, apesar de eu achar que não, pois pensava em me destruir — completa.

Desde os três anos de idade, a avó cuida do neto, fruto de um relacionamento do filho com uma mulher da mesma família. O casal não ficou junto e decidiu não assumir a criança. Dona Josete, então, pediu a guarda. O Flamengo a tratou como responsável legal pelo atleta. Mesmo assim, após o acordo, ela decidiu doar uma quantia para os pais de Vitor.

As consequências da perda foram todas de dona Josete, que recebeu a notícia da morte do neto quando ajudava o cunhado internado no hospital do câncer. Antes de Vitor Isaias, já havia perdido o marido, que era considerado avô pelo menino. Antonio Carlos infartou em 9 de fevereiro de 2015. Depois, ela casou-se novamente. A tragédia a fez recorrer a psicólogo, psiquiatra e a remédios fortes que já começou a largar.

— Tomo ainda uma vez por dia — conta.

Dona Josete diz ter sido bem tratada pelo Flamengo, embora não tenha recebido nenhuma ligação desde que aceitou o valor proposto.

— Desde o primeiro dia fui muito bem tratada, não posso reclamar. Houve crítica sobre uma homenagem, procurar e ligar, saber da família, mas sei que é muita coisa. Se abrir a porta para um, o outro vai querer também. Eles têm vontade de fazer muita coisa, mas tem muito pai que não aceita. Só criticar é fácil.

Segundo a avó de Vitor Isaias, o incêndio foi uma fatalidade. E não há como saber se o jovem se tornaria atleta profissional:

— As pessoas querem muito, mas não sabemos se os meninos iam continuar a carreira. Foi uma fatalidade. Quando fiz o acordo na mesa, chorando, pensei que íamos esperar anos para nossos filhos darem algo para nós.

Neste sábado, Dona Jô fará a missa em homenagem ao filho/neto em sua cidade, como de costume ao longo dos últimos meses. Ela não irá ao Rio.

OUTRO LADO

Procurado pelo GLOBO, o Flamengo afirmou que não daria declarações sobre o assunto depois do programa exibido no sábado pelo canal oficial do clube.

— Nós estamos dispostos a, dentro do teto, discutirmos com as famílias, tentarmos adaptar a cada necessidade — disse Landim na entrevista exibida pela Fla TV.


Fonte: https://oglobo.globo.com/esportes/incendio-no-flamengo-familiares-dos-garotos-do-ninho-contam-sobre-ano-de-luto-24234281

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