A subida de patamar do Flamengo nos últimos anos criou um cenário sedutor e hostil aos treinadores ao mesmo tempo. Com a progressiva qualificação do elenco, em função do maior poderio financeiro, o clube se transformou em vitrine, mas também em uma máquina de moer técnicos através da rejeição da torcida. Tal comportamento foi incorporado como um traço cultural ao longo de décadas, mas se intensificou. A vítima da vez é Rogério Ceni. Mesmo se vencer o Inter hoje, 16h, no Maracanã, e conseguir levar o Flamengo ao octacampeonato brasileiro na última rodada, o ex-goleiro tem sua permanência no clube indefinida.

O aproveitamento atual de 61% é inferior ao de outros treinadores que sofreram situação semelhante. Recentemente, a realidade foi enfrentada por Abel Braga, primeiro contratado da atual gestão, e pelo espanhol Domènec Torrent. Ambos tiveram aproveitamento de 64%. O legado do português Jorge Jesus, com 81%, se tornou um obstáculo a mais para Dome, e com o qual Ceni precisa lidar atualmente. No entanto, mesmo antes da passagem mágica do Mister, com a conquista da Libertadores após 38 anos, o Flamengo teve esse modus operandi . Não à toa é o clube que mais mudou no século 21 — foram 45 alterações e 29 profissionais.

No fim de 2015, o Flamengo viveu cenário semelhante. Algumas rodadas antes do campeonato acabar, o técnico Oswaldo de Oliveira foi demitido, pois a diretoria do então presidente Eduardo Bandeira de Mello já havia feito uma oferta a Muricy Ramalho. Em 2018, com a troca de gestão, os atuais dirigentes fecharam com Abel Braga e sequer comunicaram a Dorival Júnior que ele não permaneceria. O contrato chegou ao fim e o treinador entendeu que não seria renovado, mesmo com uma arrancada e o vice-campeonato no certame nacional, com 72,7% dos pontos ganhos por Dorival.

Até quem já conquistou título brasileiro no Flamengo provou que ele não é suficiente para manter um trabalho. Em 2009, na campanha que guarda uma série de semelhanças com a atual, Andrade, ídolo do clube como jogador, foi campeão, e desligado poucos meses depois, com 70% de aproveitamento. O Flamengo vinha de eleição em 2009. O contexto se repete em 2020/2021.

—Todos querem ganhar tudo no futebol — disse Ceni em sua apresentação, dia 10 de novembro.

Dos muros para fora

A principal explicação para a resistência a Ceni e aos antecessores é ir contra o que o torcedor imagina ser a solução dentro de campo. O elenco montado pelo Flamengo e a escalação já decorada pela torcida, sobretudo após o título da Libertadores, traz à tona sempre o fantasma do excelente futebol apresentado em 2019 e das escolhas que levaram àquelas conquistas. Também há contra Rogério o fato de ser ídolo do São Paulo, e de ter estado muito perto de assumir o clube onde brilhou como jogador por vários anos.

Para o psicólogo Alberto Filgueiras, que passou pelo Flamengo em 2019, o comportamento do clube tem a ver com a cultura dos torcedores e os valores que esse grupo cultiva ainda hoje.

— Os clubes de futebol têm como gestores seus torcedores. Os sócios são, por essência, torcedores. Então, eles não avaliam racionalmente as situações, eles tendem a avaliar emocionalmente. Com isso, é essa cultura que fala mais alto — aponta o psicólogo.

— E se o técnico, ou mesmo um jogador, não encaixa com esse ideal de comportamento desejado pelos torcedores (sejam gestores ou não), eles tendem a ser afastados da instituição — completa Alberto.

Tal cultura, inflamada pelas redes sociais, influencia não apenas a torcida, mas dirigentes e conselheiros do clube que rodeiam o presidente Rodolfo Landim. Sobretudo em ano de eleição, que promete ter o seu “start” na campanha após o Brasileiro. Embora Ceni não tenha recebido qualquer garantia de permanência, tem diálogo aberto com o presidente, com o vice de futebol Marcos Braz e com o diretor Bruno Spindel, que o dão sustentação. A rejeição é dos muros do Ninho para fora, na Gávea. Em oposição, há respaldo dos atletas. A relação com o elenco é franca, com trocas em favor da equipe, e entendimento total do trabalho após um período de adaptação.

“É mais de fora pra dentro. Avaliação de dentro do Ninho é boa. Treino, metodologia e vestiário. Resultado vai avalizar isso tudo. Sempre”, disse um dos dirigentes-torcedores do Flamengo.

Essa semana, o vice de futebol Marcos Braz deu respaldo, mas foi moderado.

— O Rogério se encontra em um bom momento no Flamengo em todos os sentidos. Ele é um bom treinador, a equipe é boa, e estão faltando dois jogos para ver o que vai acontecer — declarou o dirigente, que chegou a dizer em momento anterior de forte pressão que daria seu paraquedas ao técnico.