Por: Higor Neves, Isabelle Costa e João Pedro Granette
Há exatamente um ano atrás, o Flamengo teve sua história marcada pelo episódio mais triste em todos os 124 anos do clube. No dia 8 de fevereiro de 2019, dez jogadores das categorias de base, entre 14 e 15 anos, morreram em decorrência de um incêndio que acometeu o alojamento onde os atletas estavam alocados, no Ninho do Urubu. Na madrugada do dia 8, um curto-circuito em um ar-condicionado resultou na maior tragédia da história do Clube de Regatas do Flamengo, que tirou a vida de Athila Paixão, Arthur Vinicius, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson dos Santos, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Samuel Thomas e Vitor Isaías.
A SAUDADE DOS PAIS
Dia após dia, Marília tenta superar a dor de perder o único filho aos 14 anos de idade. Entre 2019 até 2020, a mãe de Arthur Vinicius vem tentando ressignificar sua vida sem a presença do “amor de mãe”, como costumava chamar o filho.
“Esse foi um ano de adaptação, porque a dor, a saudade, não passam e nunca mais vão passar, só aumenta. Então a gente vai tentando adaptar, aceitar. A gente vive de datas: dia das mães, dia dos pais. Lembramos também no dia das crianças, natal, páscoa. E agora, esse mês era de férias. As primeiras férias sem ele. Então, em tudo a gente sente falta. Eu sinto falta até da correria, que eu ia para o Rio, daquela ligação de todo dia, que ele fazia para pedir a bênção.”
Nascido em Volta Redonda, Arthur sempre teve o sonho de ser jogador de futebol. O menino deu os seus primeiros passos no futsal, e ao final de 2016, com apenas 12 anos, Arthur fez testes no Atlético Mineiro, Flamengo e Vasco. No Rubro-Negro, o jovem recebeu uma negativa, no entanto, foi aceito no Cruzmaltino, porém, Marília não deixou pois Arthur teria que morar com pessoas estranhas. Mas foi em março de 2017, por conta de um torneio realizado em sua cidade natal, que Arthur Vinicius recebeu o convite de um funcionário do Flamengo para integrar as categorias de base do clube.
– Ele passou um ano e dez meses, foi com 13 anos, em abril de 2017. No Ninho, ele morou durante o ano de 2018. Ele entrou em fevereiro, até vir de férias, em dezembro. Ele voltou no dia 05 de fevereiro de 2019, uma terça. Na sexta, aconteceu o incêndio.”
A primeira visita que Marília fez ao Centro de Treinamento George Helal foi no dia em que levou Arthur e conheceu as dependências do local. Ao saber que deixaria seu filho no Ninho, a mãe chorou por temer a violência do Rio de Janeiro.
– Eu chorei demais na porta do Ninho. Peguei ônibus, andei no shopping, tudo chorando. Ele ainda me ligou chorando, dizendo que não queria tentar e eu falei: “Mas você não disse que ia tentar? Nem tentou ainda”. Eu pensava no sonho dele, tinha que dar o apoio, não poderia desanimá-lo. E onde eu achava que ele estaria mais seguro, foi onde eu perdi ele. Eu tinha tanto medo e perdi ele dessa forma.
Um ano após a tragédia, a mãe de Arthur Vinicius tenta lidar com o luto da perda do filho e se queixa de um descaso por parte do Flamengo. Segundo Marília, o únicos contatos que ela teve foram com um psicólogo e um médico no dia da tragédia. Porém, meses depois, nenhum funcionário ou dirigente do clube entrou em contato para prestar apoio e suporte aos familiares.
– Eu acho que o que fez e faz falta é acolhimento. Eles afirmam que tentaram falar com as famílias, mas os advogados não permitiram. Todo mundo que tenta falar comigo consegue. Eu nunca fui procurada por ninguém. Eu vi um pai falando que soube da morte do filho porque alguém da família avisou. Não teve ninguém do Flamengo que ligou falando: “Aconteceu um acidente aqui, vocês virão para cá?”. Não mandaram transporte buscar, nada. Meu telefone está aqui, para quem quiser falar comigo, mas eles nunca conseguem. Eu queria saber por que não conseguem, quando foi que tentaram falar com as famílias?
Edson, pai de Pablo Henrique, também tem reclamado de fator similar. De acordo com o aposentado, o único contato que o Flamengo fez com os familiares foi realizado pela psicóloga do clube, no dia 19 de fevereiro de 2019, 11 dias depois da tragédia.
– Eu tive uma ligação da Gabriela (psicóloga) em 2019. De lá para cá, não tive mais contato com o Flamengo. Eu não tenho contato nenhum com o Flamengo. Se o clube está prestando toda assistência, como têm dito, não tem como justificar eles não me darem uma ligação durante um ano. Não tem explicação. Eu tenho o sentimento de muita frustração, abandono. Eu levei meu filho ao Flamengo, e o Flamengo devolveu meu filho num caixão. O sentimento que eu tenho pelo Flamengo é de abandono.
De forma hereditária, já que o pai também jogou futebol, Pablo Henrique realizava o sonho de ser jogador do Flamengo aos 14 anos de idade. Entretanto, o sonho do menino, que também era compartilhado pela família, foi interrompido. Além de almejar entrar no campo do Maracanã para jogar, Pablo também sonhava em dar uma vida melhor aos pais.
– Ele era um filho muito carinhoso, muito apegado à família. Era centrado, um menino que sabia o que queria, cheio de planos, projetos e sonhos. Mas o fogo comeu os sonhos dele. O sonho dele era dar uma casa para nós. Desde pequeno ele sonhava em ser jogador. O Pablo, desde os quatro anos, já estava no futebol. É muito difícil. Tínhamos uma foto dele com quatro anos no social, que foi onde ele começou. O meu filho não tem preço. Eu não vou ter mais uma benção, um bom dia, um boa tarde. Só o pai que perde que sabe essa dor.
DRAMA DE FUNCIONÁRIOS E MUDANÇAS NO NINHO
As lembranças ruins relacionadas à tragédia não se atêm somente às famílias e vítimas da tragédia. Isso porque, entre funcionários do Flamengo, o sentimento também foi modificado após o dia 08 de fevereiro de 2019. Em conversa com a reportagem do Coluna do Fla, um funcionário que optou por não se identificar contou sobre o drama de colegas:
– O segurança que esteve envolvido ficou muito abalado. Esteve alguns meses afastado, assim como uma funcionária da limpeza e o monitor. O segurança voltou a trabalhar na Gávea e parece que está afastado novamente. A funcionária da limpeza também voltou a trabalhar no CT e o monitor (que no dia do acidente não estava no módulo, que era o local de trabalho dele e onde deveria passar a noite) voltou a trabalhar na Gávea, mas não sei a situação dele hoje.
A reportagem questionou também sobre as ações do clube após a tragédia, no que diz respeito a prevenção e preparação quanto a possíveis incidentes futuros. Sobre isso, o funcionário garantiu que há pessoas dedicadas exclusivamente para tratar questões do tipo, mas salientou sobre ‘novas emergências’.
– Tem uma rotina de vistorias diárias de uma empresa que presta serviço de bombeiro civil e outra de manutenção (em elétrica) que foram contratadas pelo clube. Se você prestar atenção vai ver os dois andando pelo CT. ano passado deram curso de “Técnicas de combate a incêndio” e de “Primeiros Socorros”, e parece que vai ter esse ano novamente. O clube contratou um Técnico de Segurança do Trabalho efetivo para o CT. Agora dizer que estão preparados para emergências é meio complicado.
Ainda em contato com pessoas que trabalham ou trabalhavam para o Flamengo, a reportagem entrevistou Murillo Serra, produtor de conteúdo para as mídias do clube, que não faz mais parte do quadro de funcionários do Rubro-Negro. Ao Coluna, Murillo relatou a forte amizade com Christian Esmério, goleiro morto na tragédia.
– Foi estranho quando eu soube. No momento, mandei mensagem para três garotos, dentre eles, o Christian. Estava tudo muito confuso, mas eu já estava chorando. Depois fui ver notícias pela televisão. Passei o dia inteiro chorando. O Christian era muito meu amigo. Dos dez, ele foi o primeiro que teve a confirmação de óbito. Então, aquilo mexeu muito comigo. No decorrer da semana inteira, fiquei em choque.
– Dois momentos da nossa amizade me marcaram muito: um foi quando ele falou que sairia a convocação sub-17 para a seleção brasileira, e ele já era cotado, mesmo tendo 15 anos. Eu falei para ele ficar tranquilo, pois estaria na lista. No dia que foi chamado, ele mandou um áudio bem feliz, lembrando do que eu tinha dito. Isso me marcou. a segunda coisa foi quando ele soube que eu trabalhava com produção de shows, e avisou que queria ir em um evento organizado por mim. Isso demonstrava companheirismo, amizade. Acho que foi a última conversa que a gente teve foi sobre realizar sonhos. E eles eram novos, tinham diversos sonhos para realizar.
QUESTÃO JUDICIAL
Além da dor pelo trágico acidente e saudade dos entes queridos, outro ponto que vem gerando ainda mais desgaste junto ao Flamengo é a questão judicial. Até então, dentre as que tiveram vítimas fatais, apenas as famílias de Vitor Isaías, Gedson Santos e Athila Paixão fecharam acordo com o Fla, além do pai de Rykelmo – é separado da mãe, e o acerto conta como individual.
Em meio a este cenário, a advogada Paula Wolf, que representa a família de Jorge Eduardo também conversou com a reportagem do Coluna do Fla. Segundo ela, a situação poderia ser resolvida desde a reunião no dia 19 de fevereiro, no Ministério Público. Contudo, o Fla não aceitou o valor da indenização, em torno de R$ 2 milhões por família.
– Eles sabem disso (que as famílias aceitaram a sugestão de valor indicado pelo Ministério Público). No contato que fizemos, deixamos claro que a proposta do MP estava aceita pela família. Tanto pela que eu represento, quanto as outras também aceitaram. Mas eles falaram que não, não estavam de acordo com o valor proposto. Se tivessem, a gente teria fechado o acordo.
Questionada sobre a busca do Flamengo por novas reuniões e propostas feitas pelo clube posteriormente, ela garantiu: “Na verdade, a gente só teve um contato, que foi com o advogado, Dr. Willian. Foi nosso último, primeiro e único. Tivemos uma reunião e não houve acordo. Depois, não tivemos nenhum tipo de contato”.
VERSÃO DO FLAMENGO
Oficialmente, o Flamengo se diz aberto a conversas com familiares, garante prestar todo apoio solicitado e também pagar o valor mensal determinado pela justiça, que é de R$ 10 mil. Cobrado por respostas, o clube divulgou um vídeo com esclarecimentos, no qual estiveram presentes o presidente Rodolfo Landim, o vice-presidente geral e jurídico Rodrigo Dunshee, além do CEO Reinaldo Belotti.
Em meio às declarações, Dunshee justificou a falta de contato com as famílias apontando questões legais. Segundo ele, por ser um dos advogados do Fla no caso, não pode se comunicar diretamente com os envolvidos, tendo que lidar, primeiramente, com os advogados.
– Eu não posso falar por todos. Eu, como advogado do Flamengo nesse assunto, tenho uma dificuldade. Cada família que eu vá falar, tenho que pedir autorização ao advogado. Tive contato com algumas pessoas e sempre foi difícil porque tem um impasse e tem uma mágoa. As pessoas perderam seus filhos… Eu liguei para a mãe do Samuel. Ela tinha acabado de perder o filho e logo depois perdeu a mãe. Fui conversar com ela. Acho que cada um aqui tem sua experiência de contato, mas acho que a questão vai ser facilitado depois que fizermos todos os acordos.
Belotti também se pronunciou sobre o assunto, mas não soube indicar, precisamente, os responsáveis pela comunicação com famílias das vítimas:
– É difícil dizer quem do Flamengo está conversando com tal família. A verdade é que essa convivência desses adolescente aqui no Ninho, criou amizades muito intensas. Tivemos notícias de pessoas conversando com familiares, e o que posso garantir que nossa área de recursos humanos, que é responsável institucional neste tipo de relacionamentos, ela tem recebido frequentes contato dos familiares, tem retribuído, e de maneira muito amistosa.
PROCESSOS JUDICIAIS
Na busca por informações sobre cada caso, a reportagem do Coluna do Fla não obteve informações detalhadas sobre situações de todas as famílias. No entanto, na maioria dos casos, a situação é considerada ‘estacionada’, uma vez que não há novas propostas por parte do Flamengo.
Na última sexta-feira (07), foi realizada uma CPI na Alerj. Dentre os presentes, estiveram Reinaldo Belotti (CEO) e Willian Oliveira, advogado do clube. As presenças de Rodolfo Landim e Rodrigo Dunshee também foram solicitadas, mas ambos não compareceram. Com isso, a justiça determinou a marcação de uma nova sessão, com medida coercitiva, para que Landim e Dunshee compareçam no novo encontro.
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