Qual é o jogador mais importante do Flamengo, finalista da Libertadores após 38 anos? Bruno Henrique, pela passada longa que ninguém segura? Gabriel, pelos gols? A serenidade de Filipe Luís ou o espírito de Rafinha? São tantos nomes de Seleção que fica difícil apontar um que não seja destaque. Mas pelo menos no massacre contra o Grêmio, um inapelável 5 a 0, dois deles foram taticamente fundamentais para construir uma goleada histórica: Willian Arão e Éverton Ribeiro.
A partir dos trinta minutos do primeiro tempo, os dois mudaram de posicionamento. Arão foi jogar mais pela direita, e Éverton passou a recuar e buscar o jogo junto a Gérson. Esse simples movimento quebrou toda a forte marcação do Grêmio
Vamos entender com mínimos detalhes o que aconteceu:
Bloquear a saída de bola e cortar Arão: a estratégia do Grêmio
Como você já leu aqui e aqui, o Grêmio marca por encaixes. Isso significa que cada jogador tem um alvo, alguém a acompanhar e tirar toda a possibilidade de jogo daquela pessoa. Essa marcação acontecia nos setores próximos à bola. Veja na imagem: Mari tenta sair e: Filipe Luís tem Alisson perto, Gérson está com Matheus, o próprio Mari já recebe a pressão de Michel. Todas as opções de passe curto estão bloqueadas. A de passe longo também – olha lá o Paulo Miranda marcando o Gabigol!
A estratégia de encaixes do Grêmio — Foto: Leonardo Miranda
Olhando para a imagem de novo, o único que está livre é Éverton Ribeiro, que recebe o passe….e os encaixes do Grêmio se organizam de novo para tirar todo e qualquer conforto para quem toca na bola. Maicon avança para tirar o tempo dele pensar, Cebolinha já fecha a linha de passe de Rafinha. Gabigol e Arrascaeta estão longe e marcados.
Éverton Ribeiro recebe a bola e os encaixes se organizam de novo — Foto: Leonardo Miranda
Éverton conduz, tenta ficar com a bola e clarear, mas não consegue. Tá vendo aquele espaço onde o juiz está, sem marcação? Bruno Henrique vem buscar a bola e é acompanhado de perto por Kannemann. Aqui você nove jogadores de linha dos dois times e nenhum jogador do Flamengo aparece livre, na frente de Éverton, para receber a bola. Isso se repetiria algumas vezes…
Grêmio impôs forte marcação — Foto: Leonardo Miranda
Maicon marcando Arão, encaixes avançando: Grêmio cria
Quando um time joga por encaixes, o esquema é o menos importante, porque a atuação e a referência dos jogadores passa a ser unicamente o adversário. Maicon é um exemplo disso: ele era meia central num 4-2-3-1 ou volante num 4-1-4-1? Pouco importa. Sua forma de jogar era simples: ora pressionava Arão, ora ficava com Éverton Ribeiro. Quando fechava com Arão, o Grêmio avançava e de novo tirava a linha de passe. De novo, ninguém no Flamengo livre para receber a bola. Parecem até peças de Lego, um vermelho e outro azul. Por isso falamos de encaixes.
Maicon em cima de Arão: volante não conseguia jogar — Foto: Leonardo Miranda
Muito do futebol se dá pela confiança. Quando um time consegue uma, duas ou três jogadas boas, sempre fazendo o que foi pensado pelo técnico, a confiança aumenta. Os jogadores começam a repetir aquilo, porque sentem que é daquela forma que irão vencer o jogo. É puramente emocional e puramente tático também. A melhor chance do Grêmio na partida foi criada a partir dos encaixes. Maicon de novo avançou para conter Arão, Matheus em Gérson e Cebolinha fechando a opção de passe de Rafinha. André fecha o espaço e induz esse passe para o lado direito, de Rodrigo Caio.
Avanço em Arão fez Grêmio criar chances — Foto: Leonardo Miranda
O sucesso dos encaixes depende de duas coisas: resistência física e coordenação nas trocas. Precisa correr atrás o tempo todo, ficar muito atento para cortar qualquer bola que possa ser perigosa e decidir muito, mas muito rápido em qual peça do Lego encaixar. Éverton cebolinha lê bem a jogada aqui: como Cortez subiu para marcar Rafinha, ele decide interceptar Éverton Ribeiro. Rouba a bola e o time corre em direção ao gol, exigindo de Diego Alves.
Grêmio rouba a bola do Flamengo e quase faz o gol — Foto: Leonardo Miranda
Se há algum momento no qual o Flamengo não jogou bem nos 180 minutos contra o Grêmio, foram nesses trinta primeiros minutos no Maracanã. O time tinha um problema tático para solucionar: qual dinâmica criar para que a bola chegasse aos meias e atacantes? Como quebrar essa teia de marcação do adversário?
Willian Arão inverte com Rodrigo Caio, Éverton aparece na entrelinha
Não sabemos se o movimento de Arão e Ribeiro foi combinado por eles mesmos ou uma indicação de Jorge Jesus. Pelo calor do jogo, o mais provável é que tenha sido deles. A linha de pensamento é a seguinte: Cebolinha estava marcando fortemente Éverton Ribeiro, e conseguia roubar algumas bolas e criar algo. O Flamengo precisava estancar aquele lado, e com Willian Arão na esquerda, ele saía da cola de Maicon e ajudava a indefinir a mente de Cebolinha ou quem estivesse lá: marcava o volante ou pegava Rafinha? Também tirava Maicon (que sabidamente cansa bastante no segundo tempo) do jogo: ele pegava Gérson ou Éverton Ribeiro? Sobe pra pegar o Arão ou deixo com o Cebolinha?
Willian Arão passa a jogar na esquerda — Foto: Leonardo Miranda
Tudo se baseia em indefinir onde o adversário vai encaixar o lego da marcação. Fazer a bola encontrar o espaço que já estava livre. Se o Grêmio fosse o Corinthians ou o São Paulo, que marcam por zona, a história seria diferente (lembra que os dois jogos entre eles foram empates?). Mas o Grêmio faz encaixe, Arão sabia disso e pensou numa solução pensando no modelo do adversário.
Deu MUITO certo! Aos 26, Éverton cria chance recebendo passe de Gérson. Aos 29, ele recebe de Rafinha e coloca para Gabigol – Kannemann tirou.
O Flamengo começou a ficar com a bola, criar mais e lidou com o emocional do Grêmio. O primeiro gol foi um duro golpe. O segundo, nem se fala. Ae a bola vai entrar, é outro papo. O que interessa é a forma como ela chega lá. A construção do terceiro gol é um bom exemplo: Arão de novo vem pela direita e atrai o encaixe de Maicon. O Maicon não se tocou que o Arão estava pelo lado e não mais por dentro, então ele não teria mais o André para fechar linha de passe e ajudar nessa marcação. Alisson fica com Rafinha, como Cebolinha. Quem pega o Éverton Ribeiro é o Cortez – o LATERAL, que foi arrastado para o meio-campo.
Willian Arão no terceiro gol — Foto: Leonardo Miranda
Na sequência do lance, o Arão não se limita a ficar pelo lado – ele aproxima de Éverton, ajudando a indefinir ainda mais a marcação do Grêmio e atraindo Matheus, que ficou com Gérson. Ribeiro pega a bola e gira, tirando Cortez do encaixe. Isso fica visível pelo lance abaixo, com Cortez voltando pra defesa e deixando a marcação para André – afinal, Ribeiro invadiu o setor de André.
Mas o mais interessante é a pena que isso provoca no lado inverso da jogada. O desentendimento de Cortez e André prejudicou Cebolinha, que ficou perdido: começa a correr para pegar o Éverton Ribeiro ou acompanha Filipe Luís até o fim? Filipe identifica um espaço, avança e recebe de Éverton na jogada que origina o pênalti.
Cebolinha falha na marcação e Flamengo chega — Foto: Leonardo Miranda
Há muitas formas de talento, e inteligência de jogo é uma delas
Willian Arão sofreu com críticas pesadas, injustas, perseguições que num país sério seriam motivo de prisão. Na nossa relação muitas vezes tóxica com o jogo, esquecemos que há vários tipos de inteligência, vários talentos que podem ser explorados. O volante erra muitos passes num time espaçado, mas numa equipe mais compacta, ele consegue articular e organizar o jogo. Isso não é só talento, habilidade ou alegria com os pés: é inteligência.
Willian Arão comemora gol contra o Atlético-MG — Foto: Pedro Vale
O futebol é complexo justamente porque ele é feito de uma teia entre mente e corpo que precisa estar sintonizada para dar certo. Dentre todas as variáveis, há uma que rege essa sintonia como nenhuma outra: o tempo. É tudo tão rápido que não dá para pensar. Não tem como parar o jogo, pegar a análise tática e ver o que está dando certo ou errado. Tente visualizar isso imaginando o que cada jogador vê em campo: não há linhas, nem círculos, tudo parece distante (estamos falando de um campo de 100 metros) e todo mundo quer a bola, porque é com ela que se joga.
Por isso é tão difícil alcançar um nível coletivo de jogo. Por isso é ainda mais difícil uma mudança tão complexa e inteligente como a conexão entre Willian Arão e Éverton Ribeiro. Imagine o que eles pensaram para articular esses movimentos? A percepção que tiveram sobre o time do Grêmio em apenas meia hora? Craques, decisivos e finalistas da Libertadores. Hora de pedir desculpas ao volante, se render ao talento do meia e admirar o Flamengo de Jorge Jesus, que joga muito mais com a cabeça do que com os pés.
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