Arthur Muhlenberg: Mariolas de Ouro

Estava decidido a começar estas mal traçadas domingueiras que agora lhe ferem as retinas com a surradíssima invectiva “O Carioca Não Vale nada”, que parecia bastante adequada a um comentário pré Fla-Flu pela ultima rodada da ínfima Taça Rio. A despeito da minha firme decisão, a Vasca, nossa baranga de fé, deu por bem avacalhar meu planejamento. Não apenas perdendo a virgindade dentro de casa, sob o olhar estupefato de milhares de coraçõezinhos infantis homiziados na pocilga sãojanuaresca, como virtualmente colocando o Bangu na semifinal do carioqueta, ou da Taça Rio, e garantindo a presença dos mulatinhos rosados na Série D podendo chegar à C. Perdoem a imprecisão, o regulamento é muito complicado.

Ora, diante da evidente e insofismável relevância do inesperado resultado para o destino dos rapazes banguenses seria uma idiotice começar falando que o Carioca Não Vale Nada! Valor é um conceito bastante relativo, cuja aferição está totalmente ligada à métrica escolhida e ao observador. Na filosofia, valor é uma relação entre as necessidades do indivíduo e a capacidade das coisas satisfazerem o pensamento racional do indivíduo. Essa relação é que explica a hierarquia de valores, que vai ranqueando tudo de acordo com a urgência e prioridade das necessidades e a capacidade das coisas as satisfazerem.

Pro torcedor do Flamengo os Campeonatos Cariocas, e as Taças Rio e Guanabara, não nos satisfazem, tem valor decorativo. Já quase não temos lugar na estante pra outro trambolho. Já para o Bangu um Carioca é o Santo Graal e a mera aproximação das suas fases finais já possui o condão de mudar vidas e transformar destinos. Quem viu a sincera e romântica entrevista do atacante banguense Marcos Junior à beira do gramado sabe que não é caô. É justamente nesse poder de transformar tanto os cenários quanto os atores, que por acontecer na pista nós, frequentadores dos andares mais altos, muitas vezes nem percebemos, que reside toda a importância e transcendência do nosso modestíssimo rural. Que eu tantas vezes obtuso, mas só enquanto não percebia essa altissonante obviedade, julgava inapelavelmente condenado.

Mas parece que há um vento de mudança no ar. Não é um tufão, mas a suave brisa provocada pela inegável aproximação tática, técnica e organizacional de Bangu, Cabofriense e Volta Redonda do bloco dos médios cariocas (os três patetas de sempre) pode significar uma retomada da competitividade do campeonato. Com mais times disputando com chances reais as premiações e as classificações o nível técnico da competição papa-goiaba tende a subir. O Bangu, inclusive, tem uma torcida de peso. Com torcedores muito mais presentes do que os do Fluminense. Um dos mais assíduos e pesados é o presida da FERJ, cuja sufocante onipresença no microcosmo do carioqueta talvez tenha sido responsável pelo inusitado fato de não terem marcado o tradicional pênalti pra Vasca na hora em que água bateu nas bundas lusas.

E não é exagero, mas sim boa ciência, quando afirmamos que basta que se mantenham os índices de crescimento vegetativo das populações da Zona Oeste e do Sul Fluminense para que em alguns poucos meses as pequenas, mas irredutíveis, torcidas do Bangu e do Volta Redonda suplantem numericamente a torcida do Foguinho. O que também não chega a ser uma façanha demográfica. Por esses e por outros alvissareiros indícios que é possível pensar num renascimento do nosso campeonato estadual. Que não se dará com a melhora dos pequenos, que mobilidade social na ascendente nunca foi o nosso forte, mas com a inescapável decadência dos médios. No topo da pirâmide socioeconômica do futebol carioca só há lugar para um.Achtung!No Rio de Janeiro a germanização já começou.

Mas o esperadoRisorgimentoe um novo pacto social no Carioca não são para agora. Tenham paciência. Pra agora, às 16 ou às 18:30 h, teremos mais um Fla-Flu outonal à leite de pato. Teoricamente esvaziado pelas circunstâncias o centenário clássico interdivisional, segundo alguns estudiosos do arcano regulamento do carioqueta, pode significar, tanto para o Flamengo, já confirmado pela meritocracia nas semifinais, quanto para os réprobos tricolores, algumas vantagens futuras como escolher o lado de campo, a cor dos calções ou jogar por dois empates nas partidas decisivas. Miudezas, sim, mas que conferem alguma finalidade ao embate que não a meio embaraçosa subserviência de preencher a grade da programação dominical de uma emissora de TV.

Segundo alguns rumores as assim ditas vantagens não foram capazes de despertar a cobiça dos antiesportivos tricolores, que pouparão seus craques e mandarão a campo seus proscritos e enjeitados. Não que faça muita diferença, é difícil até diferenciar um grupo do outro. Mas só de pirraça o Flamengo deveria escalar na lateral direita o busto do Leandro inaugurado ontem na Gávea. Mesmo sabendo que diriam que o Flamengo foi covarde ao usar de força desproporcional para oprimir uma minoria.

Ao Papaizão Flamengo, condenado por sua grandeza, como um Atlas caboclo, a carregar nas costas os 11 coirmãos, a Federação, imprensa escrita, falada e televisada, o campeonato em si e a plêiade de come-e-dormes e picaretas abrigados sob sua obliterante sombra, não há alternativa, tem que vencer a porcaria do Fla-Flu. Vai ficar até feio se não o fizer. Mas tá tranquilo, é assim também com o próprio campeonato. Se perde é o fim do mundo. Se ganha é apenas uma conquista vulgar, que nas hostes rubro-negras significará pouco mais do que o cumprimento de uma obrigação. E mais uma vez lá vamos nós, argonautas, em busca das mariolas de ouro. Vencer, vencer, vencer. Às vezes é muito difícil ser Flamengo em Lilliput.

Por: Arthur Muhlenberg / República Paz e Amor

Fonte: https://colunadoflamengo.com/2019/03/arthur-muhlenberg-mariolas-de-ouro/

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